Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
A ausência de SUS na vida de minha irmã
Dandara Baçã de Jesus Lima

Última alteração: 2021-12-20

Resumo


As pessoas que vivem com endometriose no Brasil vivem em situação de grave ausência do Estado nas suas demandas e necessidades de saúde. Digo pessoas para contemplar todas as identidades de gênero que podem ter o órgão útero. A Saúde não tem o diagnóstico, acompanhamento, linha de cuidado, rede de referência, cuidados paliativos para endometriose. Na Previdência não tem afastamentos, aposentadoria, observação das demandas das pessoas trabalhadoras. Na Justiça nenhuma garantia de rito processual célere, prioridade, direito à assistência em privação de liberdade.

É só uma cólica forte. Nessa cólica não vale atroveram, é só na morfina. Observo de Brasília a luta da minha irmã, uma mulher preta, nulípera, jovem, pobre, susdependente. Eu na gestão federal me sinto uma inútil por não ter os contatos para fazer com que minha irmã tenha uma atendimento digno em Rondônia. Eu fui para o RH muitas vezes desde que entrei e não consegui construir relações que salvassem a vida da minha irmã. Se eu tivesse a influência, a conformidade suficiente, quem sabe minha irmã não teria uma melhor qualidade de vida. Até o momento os livros que li, o mestrado que concluí, os SEIs que respondi, os e-mails que li e as reuniões que participei não me permitiram criar nada. Eu também sou nulípara, mas a do pior jeito, daquele que não pôde sequer dar mais vida aos outros, e sequer aos seus.

Minha irmã vive na emergência, sangrando, em crises dolorosas, medicada. Minha memória do celular é cheia das fotos do braço dela no hospital. Quase toda noite a mensagem que ela está no hospital. Ela lembra minha mãe. Essa percorreu todas as emergências dos hospitais particulares e públicos do Distrito Federal e do entorno. Minha mãe batia ponto todo mês. Ela tinha doença falciforme, asma, depressão, e muito para viver. Quando nasceu uma sentença de morte aos 27 e uma vida peregrinando em hospitais. Até que numa greve da saúde de Brasília, ela no Hospital Regional de Santa Maria num box de emergência, depois de tanto se cansar, minha mãe morreu. O frigorífero não estava funcionando, minha mãe foi colocada no gelo, como se fosse uma cerveja. E vejo que minha irmã pode terminar da mesma forma.

Eu acredito no SUS, eu amo o SUS, eu defendo o SUS. Mas o SUS que me venderam quando eu entrei no Ministério é muito diferente do SUS que eu vivi e que minha irmã vive. Parece que quando a gente entra na gestão do SUS é contaminado como o vírus do “O SUS É MARAVILHOSO” e fingimos não ver que ele tem muitas deficiências. Quem sabe o SUS não seria melhor se a gente não tivesse adicional de saúde e fossemos obrigados a ser susdependentes. Se o SUS é tão maravilhoso porque tu não pega teus atestados de psiquiatria no SUS?

Cada um tem uma ideia do que seria melhor, mas estão insensíveis às vozes dos que precisam do SUS para viver. Uma dor incapacitante, limitante, sofrida em silenciamento e não serão as ideias mirabolantes de alguém que não entende o que é depender do SUS que modificarão a vida da minha irmã. Carolina Maria de Jesus disse que o Brasil tem que ser governado por quem passou fome, porque a fome é professora. Eu penso que o SUS devia ser governado por quem precisa dele. Devia ser o povo a mandar na saúde. Os excluídos deveriam assumir as cadeiras e a vista para o Itamaraty.

Vejo que tem dinheiro para tudo. É dinheiro pra OPAS, convênio, TED, incentivo, PROADI. Sai um bando de dinheiro, mas eu continuo vendo minha irmã morrendo. Eu ainda vejo médico receitando remédio que ela não tem dinheiro para comprar. Vejo o sofrimento dela todos os dias enquanto respondo SEIs que não salvarão a sua vida.

No SUS está disponível para a pessoa diagnosticada com endometriose exames, cirurgias e remédios. Mas tem uma barreira entre a disponibilidade e o acesso. Uma barreira maior para pessoas pretas, pois elas não são validadas em suas dores. Minha irmã escuta dos profissionais de saúde o mesmo que minha mãe,  que não vão dar morfina para ela não viciar. Viciar em ficar sem dor não deveria ser um dos propósitos de um tratamento? Esse estereótipo que mulheres negras são propensas ao vício fez com que minha mãe e agora minha irmã não tivessem acesso ao melhor analgésico diante de suas dores. É um falso moralismo em torno do vício, pois por uma possibilidade é negado à pessoa preta o medicamento que poderia deixá-la sem dor. Talvez haja também um sadismo em ver a mulher preta agonizar ou suplicar pelo remédio, uma imagem que recorda a escravidão brasileira.

A morte não foi naturalizada na epidemia de covid como muito dizem. A morte é naturalizada desde a invasão do Brasil. A história das mortes são contadas com leveza e até viraram piadas. Não foi o Datena e o Balanço Geral que fizeram a gente naturalizar a morte. A morte faz parte do que chamamos Brasil. Então a gente não se espanta que uma mulher sangre até a morte. Ou como a mãe de uma amiga que cagou até morrer. O médico no SUS não sabe o que tem, o na privada vai até o gene pra descobrir. Será que só questão de equipamento? As pessoas simplesmente morrem na fila e os SUSnáticos só contabilizam. É um número, é só mais um. Essa é uma das brutalidades da estrutura desse país. As mortes nunca afetaram o sistema e a morte próxima da minha irmã não causa nada.

A minha irmã tem uma filha com fenda palatal, ainda aberta pela falta de profissionais e estabelecimentos no estado dela. Minha irmã não teve dinheiro pra terminar a faculdade. Ela não tem trabalho. Ela é confundida com os haitianos por conta de sua pele escura e sofre preconceitos que beiram à escravidão.

Essa é só uma das milhares de mulheres com endometriose que dependem do SUS e que não encontram reciprocidade nas suas demandas. Os profissionais da gestão federal estão entorpecidos pela fantasia de que o SUS é maravilhoso enquanto tem planos de saúde. Minha irmã é só um retrato de uma mulher preta que está morrendo a mais de 10 anos no SUS.