Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Violência institucional na educação médica: de vítimas a perpetradores
Laura Aparecida Xavier de Abreu, Iarin Barbosa de Paula, Anna Maria de Senna Migueletto, Iago Resende Carvalho, Wallisen Tadashi Hattori, Jéssica Bruna Borges Pereira, Mariana Hasse

Última alteração: 2021-12-20

Resumo


APRESENTAÇÃO: A discussão sobre a violência existente no contexto do ensino médico, ainda que importante, é incipiente e não acompanha as modificações feitas para o avanço da educação. De fato, a transição para um modelo de ensino mais humanizado é recente e ainda enfrenta resistência, especialmente devido a um tradicionalismo arraigado. A alçada da figura do médico ao posto de herói, ainda que não seja novidade, representa grande desafio para a humanização da educação médica, na medida em que a jornada do herói - método de desenvolvimento utilizado na literatura para descrever o processo que leva à dignificação da posição de superioridade entre os demais seres -, é marcada pelo sofrimento: é necessário sofrer para que se mereça destaque. Deve-se considerar como parte importante do problema a criação de uma figura super-humana daquele que exerce o saber médico, sendo que o martírio configura componente importante para a abnegação relegada por muito tempo a essa classe profissional. O médico, no pensamento coletivo é, antes de tudo, aquele que renuncia a si pelo outro, e essa visão idealizada possibilita que métodos de coerção sejam empregados na construção de ambientes de ensino. É sob essa perspectiva que muitas violências instituídas no meio médico são construídas e perpetuadas, tanto entre professores e estudantes - em que a relação hierárquica permite que as “violências pedagógicas” sejam utilizadas sem constrangimentos -, quanto entre os próprios estudantes, em relações nas quais a distinção entre veteranos e ingressantes é marcada pelo exercício de violências frequentes e historicamente perpetradas sem criticidade sobre as consequências desses atos. Nesse contexto, é possível perceber que as violências institucionalizadas correspondem a práticas premeditadas para a formação do futuro profissional, persistindo mesmo nos momentos de ensino remoto, como uma forma de cyberbullying. Assim, ainda que práticas de ensino sejam alteradas, o uso de formas violentas, tanto na comunicação, quanto nas ações, continua existindo, o que leva a prejuízos, especialmente aos estudantes. Entretanto, em muitos casos, a vítima da violência não se identifica como tal, o que decorre da naturalização e banalização dos atos e da ausência de clareza sobre quais são as violências sofridas na trajetória de ensino médico. A humanização do currículo trouxe consigo diversos avanços na elucidação das violências existentes na sociedade, e permite que situações outrora tidas como normais, sejam analisadas sob uma nova ótica, que considera a visão do oprimido e possibilita a tomada de consciência sobre o que foi vivido. Esse processo pode levar à quebra do ciclo de perpetuação da violência e permitir, finalmente, que ela seja reconhecida como tal. O objetivo deste trabalho é discutir como o ensino das formas de violência, em especial a institucional, permite ao estudante do curso de Medicina compreender seu papel ora como vítima, ora como perpetrador de atitudes violentas, e possibilita o rompimento do ciclo de reprodução da violência no ensino médico e no exercício da profissão. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: Este relato tem como ponto de partida uma experiência de ensino sobre tipos de violência, no eixo de Saúde Coletiva oferecido no segundo período de um curso de graduação em Medicina. Em uma atividade realizada remotamente, os docentes responsáveis apresentaram o conceito de violência institucional e os discentes iniciaram indagações a respeito das diferentes manifestações dessa violência, muitas vezes, de difícil identificação. Com efeito, a discussão encaminhou-se para o reconhecimento de situações de violência institucional no ambiente universitário, suas origens, relações com o curso de Medicina e possíveis desdobramentos desses fatos na vida dos envolvidos. Dentre os fatores intensificadores do risco de tornar-se vítima de violência institucional nas faculdades de Medicina, destacou-se a noção de “local cobiçado” que seria ocupado pelos acadêmicos. Esse aspecto estaria relacionado à grande concorrência pelo ingresso no curso no país, em especial, em universidades públicas, que geraria a noção de que só merecem permanecer aqueles capazes de, não apenas vivenciar, mas suportar a realidade de ensino. Nesse sentido, violências verbais e psicológicas seriam mecanismos de subjugação, refletidos na competição pelas melhores notas, funções, oportunidades de aprendizagem, chantagem emocional e na rejeição a iniciativas que visem modificar o status-quo entre estudantes, corpo docente e coordenação. Paralelamente, a identificação da violência na experiência de sujeição aos veteranos foi recorrente na discussão. Isso se deve ao fato de que as atitudes vexatórias contra os ingressantes não deixaram de ocorrer mesmo durante o período de distanciamento social, sugerindo o quão institucionalizadas são as referidas práticas. Alguns estudantes também destacaram o teor de “violência como legado”, pois as vexações eram carregadas da ideia de que as turmas ingressantes têm a responsabilidade de manter a tradição de aviltamento. Foi listado ainda que essas ações não se limitam às turmas imediatamente anteriores e pertencentes às mesmas instituições de ensino, mas também aos ambientes exteriores à universidade. Esse ciclo de violência também foi reconhecido como um desdobramento da lógica de fazer merecer o local de privilégio ocupado por esses estudantes, pois seria alimentado pela necessidade de autoafirmação para pertencer verdadeiramente a um grupo tido como “seleto” perante a sociedade. A partir dessas reflexões, os estudantes contemplaram como essas experiências poderiam traduzir-se na reprodução de violência institucional no ambiente profissional médico após a saída do meio acadêmico. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: RESULTADOS E/OU IMPACTOS: Através da experiência, constatamos que, enquanto estudantes não somos apenas vítimas desse contexto, e podemos nos tornar agentes da perpetuação desse ciclo. Evidentemente, o processo catártico de descoberta da ocupação desse duplo lugar - vítima e potencial agressor - não foi desacompanhado de estranhamento e da constatação da necessidade de mudança desse cenário, uma vez que essa epifania reverbera não somente na nossa posição de estudantes, mas também na posição de futuros profissionais da medicina. Assim, evidencia-se a importância da educação para a constatação e da possível alteração da ocorrência de atos violentos em suas múltiplas faces, como maneira de interromper sua a reprodução acrítica e naturalizada. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A partir do exposto, torna-se perceptível a violência institucional que se apresenta com mais de uma justificativa, mas que se pauta na propagação de um ontem eterno no qual os estudantes, baseados unicamente na tradição, reproduzem acriticamente as violências que sofrem. Isso é perceptível pela manutenção dos trotes que, embora tenham sido modificados em alguns aspectos, mantêm-se produtores de humilhação e normalizadores dessa violência como parte da rede institucional. Diante disso, é indiscutível a materialização, nos ambientes de formação médica, da noção foucaultiana de que tanto a violência como a disciplina visam conformar um ser humano dócil e que ocupe um lugar predeterminado na sociedade. Nesse sentido, é sobre o corpo que a microfísica do poder atua para conseguir os seus intentos, marcando o desvalor do estudante ingressante por sua condição de não detentor de conhecimentos. Essa conduta reverbera na absorção desses valores e reprodução deles, em um ciclo marcado pela internalização da violência e da decadência gradativa da saúde mental dos estudantes. Por isso, faz-se necessária a ampla discussão do tema, como ocorreu na experiência relatada, com o objetivo de nomeá-la adequadamente, identificar ocorrências e produzir discursos que auxiliem na conscientização sobre situações pelas quais os estudantes passaram e podem reproduzir, visando o rompimento do ciclo da violência. É, sobretudo, a partir da escuta ativa e especializada das demandas dos que sofreram com essas ocorrências, que poderemos criar contextos de superação.