Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Vidas pretas na Amazônia: um relato sobre os agenciamentos do feminismo negro
Joana Maria Borges de Freitas, Julio Cesar Schweickardt

Última alteração: 2021-12-18

Resumo


De início já consideramos importante dizer que para tecer as reflexões expostas neste relato recorremos ao pensamento da socióloga Patrícia Hill Collins, a partir do qual pudemos conhecer e aprender sobre o pensamento feminista negro. Consideramos  bem importante o que as feministas negras têm a ensinar, independente do lugar que cada um ocupa, seja uma mulher negra ou um homem branco.

Partimos das afetações e agenciamentos que ocorrem em pesquisas implicadas, aquelas em que os pesquisadores se misturam ao cenário e aos sujeitos da pesquisa, como quando se lança mão da cartografia sentimental como estratégia metodológica. As afetações, nestes autores, orientanda e orientador, começaram especificamente no ano 2018, a partir das articulações com a liderança da população de interesse do estudo- a população amazonense negra remanescente de quilombos que vive às margens do Rio Andirá, área rural do município de Barreirinha/AM.

Pois é! Existem vidas pretas na Amazônia. A noção dominante de uma Amazônia marcada pela cultura indígena faz com que a escravidão e a cultura africana se configurem como algo menor e sem significado para a formação cultural desse território, entretanto eles e elas estão lá se organizando politicamente, assumindo uma identidade que os configura como sujeitos de direitos étnicos para reivindicar a posse dos territórios que tradicionalmente ocupam. Um grupo social que pela invisibilização gerada pelos conflitos de interesses, mas não somente, através da coletividade articula- se com os mais variados atores e entidades na luta para a garantia dos direitos reconhecidos, mas não consolidados pelo Estado. Dito isso, nos apresentamos como uns desses vários atores, que ligados a uma entidade governamental de prestígio científico, nos tornamos um ponto das redes de apoio dos quilombolas do rio Andirá.

A motivação para a escrita deste relato de experiência, atravessado pelos agenciamentos do feminismo negro, foi um episódio relacionado à imunização das populações quilombolas contra a COVID-19.  Como mencionado anteriormente, nos tornamos um dos pontos das redes de apoio dos quilombolas, cuja empatia e solidariedade com a causa destes foi se construindo pelos agenciamentos e, consequentemente, afetações da pesquisa de campo.

Dos encontros com os quilombolas, certamente o mais marcante se deu pelas vivências da aproximação com a articuladora do grupo, uma mulher intrépida, cuja vida de militância está publicada em livro. A articuladora aprendeu, ainda criança, que a cor da pele era um fator determinante para a vida de uns, e mais tarde sentiu os efeitos das opressões vividas pelas mulheres que são atravessadas por eixos de subordinação- raça, gênero, cor, sexualidade, religião e outros- que intersectam suas existências.

Agora que a articuladora do grupo quilombola foi apresentada, chega o momento de relatar o episódio que motivou as reflexões deste relato. Aconteceu em fevereiro de 2021, a articuladora entrou em contato para saber por que os quilombolas não estavam sendo vacinados contra a COVID-19, se ela tinha visto nos noticiários que eles estavam entre os grupos prioritários, falou ainda, que já tinha conversado com a gestão do município, na condição de representante de um coletivo, mas não obteve êxito. Diante da demanda sentimos uma certa obrigação em dar respostas, mesmo não tendo ligação alguma com a gestão do município e seu plano de imunização. Começamos então a contactar pessoas que foram passando os contatos de outras pessoas, até que chegamos à responsável pelo Programa Nacional de Imunização (PNI) no município. E ao dizer que eu éramos uma pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Amazônia), não demorou muito para recebermos a resposta, via ofício; um contato informal via aplicativo de mensagens e recebemos as informações que a articuladora necessitava. Isto demonstra como o sistema invisibiliza as minorias, ou melhor, como o racismo está presente nas estruturas de poder.

O relato no parágrafo anterior apresenta-se profícuo para várias discussões, como o racismo estrutural, entretanto, volto minhas reflexões para as afetações produzidas a partir dos encontros com outros corpos colonializados racializados, bem como o vínculo estabelecido com a articuladora do grupo, que passamos a compreender à luz do pensamento feminista negro.

O sentimento de obrigação para atender às demandas tem a ver com o que Patrícia Collins pontua como - a ética do cuidado, um dos princípios epistemológicos do pensamento feminista negro, um conhecimento tecido por mulheres negras a partir de suas próprias experiências. Diante desse referencial, passamos a enxergar na articuladora do grupo, um protagonismo que é próprio do feminismo negro, e não apenas inerente por se tratar de uma liderança.

A ética do cuidado sugere que as ideias são indissociáveis de quem as cria ou compartilha, não se pode falar daquilo que não possui um sentido particular, por essa razão a ética do cuidado apresenta três componentes centrais- a expressividade pessoal, as emoções e a empatia. O primeiro trata da singularidade de cada pessoa, são as diferenças que enriquecem; o segundo componente demonstra que a pessoa que profere um discurso acredita mesmo no que está dizendo; já o terceiro diz respeito à capacidade de empatia, componente que consideramos o principal em nossa vivência, é muito difícil abrir territórios de vida para quem não demonstra empatia, acreditamos fortemente no poder desse componente para a formação e o fortalecimento de vínculos.

Vimos na articuladora quilombola, uma figura protagonista de um movimento organizativo político, que também se expressa pelo feminismo negro; um símbolo de luta e resistência para a superação das imposições dos grupos dominantes, que nos atraiu não unicamente por configurar inicialmente um objeto de pesquisa, mas pela singularidade, pela emoção e empatia direcionadas a uma coletividade para o desenvolvimento da compreensão de sua condição político-social.  A ética do cuidado transbordante na articuladora dos quilombolas do Rio Andirá é um convite para todas as pessoas, que como esta autora e este autor, mas não somente, que transitam entre fronteiras que vão da academia à militância, como quem recebeu uma convocação para a luta coletiva contra opressões históricas e sociais. Um convite para a produção de transformações sociais mais profundas com base na luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos.