Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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CULTURA, SAÚDE E REAFIRMAÇÃO ÉTNICA NA COMUNIDADE QUILOMBOLA CRUZ DA MENINA EM DONA INÊS/PARAÍBA
Nathália Jorge Novais, Luziana Marques da Fonseca Silva

Última alteração: 2022-01-07

Resumo


No Brasil, a colonização foi marcada pela violência do tráfico atlântico negreiro, que compôs a base da mão-de-obra da colônia portuguesa. Antes da Lei Áurea, escravos fugiam das senzalas e formavam quilombos para resistirem à escravidão e manterem suas tradições. Mesmo assim, a colonização do saber foi institucionalizada, excluindo as práticas das populações subalternizadas, usurpando seus saberes e negando sua autonomia. Por séculos, a medicina tradicional foi manuseada por mulheres e anciãos, sendo o único sistema de assistência à saúde existente, porém, seus ancestrais perderam protagonismo e suas práticas culturais foram retiradas, sendo obrigados a aderirem às práticas europeias. Após a abolição da escravatura, muitos libertos se uniram aos quilombos existentes ou formaram novos a partir de diversos fatores. O racismo estrutural e epistêmico foi um desses fatores, que gerou processos de resistência e reafirmação étnica de quilombolas, como no caso do Quilombo Cruz da Menina, Dona Inês, Paraíba.

O processo de territorialização que aconteceu nessa comunidade é baseado na exclusão dada pela própria cidade, partindo de um pressuposto comum, a negritude de uma população migrante, que buscava refúgio. Os primeiros moradores se estabeleceram naquele território e compartilharam entre si experiências diárias de exclusão e marginalização pelos demais moradores da cidade, o que resultou em vínculos familiares, códigos, tradições, parentesco (casamentos endogâmicos), processos de territorialidade e saberes populares de cuidado a enfermidades. Esses saberes e práticas de cuidado à saúde, normalmente, são passados de geração em geração, e estabelecem uma relação com a natureza e sua flora, produzindo xaropes, medicamentos,chás, banhos, garrafadas, etc.

Este resumo, portanto, tem como objetivo apresentar as análises iniciais da etnografia realizada na comunidade, refletindo sobre as relações raciais, o processo de territorialização e a questão da saúde através dos relatos de nossos colaboradores. Assim, a pesquisa “Cruz da Menina: processos de luta, tradição e reafirmação étnica quilombola em Dona Inês, Paraíba”, buscou em um primeiro momento, conhecer os indivíduos que se reconhecem e são reconhecidos como referências nos cuidados à saúde, como parteiras, rezadores e curandeiros (as) pela comunidade. Por meio da observação participante, buscamos refletir sobre os saberes tradicionais da comunidade, observando as aproximações e distanciamentos com as práticas biomédicas vigentes. Também buscamos perceber os significados e efeitos desses saberes para a atenção à saúde da comunidade e a relação com a população local, identificando os indivíduos que realizam práticas de cura, em meio as sensibilidades do coletivo e suas cosmovisões.

Contudo, no decorrer da pesquisa, notamos que os saberes e práticas de cura são descritos no passado, como algo desnecessário após a implantação da UBS e a disponibilidade de veículos para deslocamento da população para os hospitais próximos. Mesmo que se reconheça que a natureza fornece a cura, muitas colaboradoras ressaltaram que veem na praticidade existente atualmente uma melhor qualidade de vida. Isso acontece pois, de acordo com minhas colaboradoras, eles eram vistos antigamente como “selvagens” e com o acesso a esses recursos, foram “melhor aceitos” na cidade, reconhecidos como seres de direitos. Ou seja, conseguimos observar o modo como o racismo estrutural e a colonialidade influenciam nas práticas dentro da comunidade, a maneira como a população da comunidade se viu tendo que abrir mão de práticas comuns para garantir outros direitos, para garantir benefícios externos.

Para isso, realizamos, até o presente momento, 11 entrevistas na comunidade, buscando conhecer todos os aspectos que contribuem na reafirmação étnica da comunidade. As entrevistas foram semi estruturadas, permitindo que as colaboradoras realizassem um resgate da memória e contextualizassem o cenário vivenciado, trazendo temas importantes para o entendimento de nossos objetivos. Nos apropriamos do instrumento teórico-metodológico dado pela interseccionalidade, dentro de uma pesquisa antropológica, para compreendermos esses fenômenos sociais que transversalizam as questões raciais, de gênero e de classe, suas especificidades e o próprio papel da pesquisadora como atriz social, rompendo com esse olhar de neutralidade pregado nas ciências sociais nas décadas passadas.

Também participamos durante esse ano de momentos importantes para a comunidade, como o Dia de Todos os Santos (1 de novembro) e Dia da Consciência Negra (20 de novembro), que possibilitaram a compreensão da questão religiosa e cultural na comunidade, com momentos preciosos de interação social entre os moradores do quilombo e os demais moradores da cidade. No dia 1 de novembro, ocorreu a procissão até a Capela Cruz da Menina, com saída da igreja mãe às 4 horas da manhã e chegada a Capela às 5 horas da manhã. A programação contou com duas missas (manhã e tarde) e, durante todo o dia, foram recebidas pessoas para preces, pedidos e agradecimentos, no espaço tido como sagrado pelos moradores da cidade. Já no dia 20 de novembro, a programação contou com rodas de capoeira, ciranda, desfile de moda, feijoada comunitária, além de muita música com cantores locais. Com essa vivência, criamos um acervo fotográfico denominado de “Sou negro(a) sim: um olhar às dinâmicas e práticas culturais evocadas no dia 20 de novembro pela comunidade quilombola Cruz da Menina, Dona Inês/PB”, com 17 fotografias que apresentam as dinâmicas, corporeidades e movimentos de representação e performance do grupo, que possuem influência da dança, das cores e das vestes da cultura africana, além dos tambores utilizados durante a apresentação. Ademais, as fotografias também ilustram os espaços importantes para comunidade. Nesse sentido, percebemos a fotografia como um instrumento que evoca dinâmicas que não conseguimos apenas descrever, mas podemos visualizar, apreciar e enriquecer o trabalho etnográfico, em que a imagem permite o registro das experiências pelo “sentir”.

Essa pesquisa é uma das primeiras a serem realizadas na comunidade e acreditamos que, a partir dela, abriremos novos espaços de diálogo sobre a construção da identidade étnica na comunidade. Também acreditamos que essa pesquisa valoriza os saberes tradicionais em saúde, educação e religiosidade, sendo pertencentes ao processo de territorialidade do grupo. Ela contribuiu com estudos em diferentes âmbitos, tendo em vista comunidades quilombolas no Nordeste e a visibilidade de suas pautas, movimentos sociais e importância das práticas culturais para reafirmação étnica do grupo e garantia dos direitos a populações quilombolas. O fortalecimento do movimento negro foi fundamental na luta pelos direitos e reconhecimento dessa população. Portanto, a pesquisa tem se revelado importante na produção de eco para a voz dessa população, sobretudo, das mulheres quilombolas, seja dentro ou fora da comunidade, respeitando os lugares de fala e compreendendo esses fenômenos como instrumentos de transformação social.

O reconhecimento da luta e resistência dos povos quilombolas é importante para descolonizar as epistemologias hegemônicas da modernidade, que regem um processo de colonialidade do saber, ser e existir. Além de combater ao sistema genocida instaurado no país, que exclui e marginaliza os grupos tidos como subalternos, reconhecendo que o preconceito, julgamento e o racismo existentes em nossa sociedade discriminam os saberes ancestrais e o corpo negro. Ademais, a pesquisa busca romper com essas barreiras criadas pelo saber hegemônico e o próprio processo de colonialidade que dá sustentação ao racismo estrutural, institucional e epistêmico, abrindo espaços para que essas vozes ecoem.


Palavras-Chave: Identidade étnica; Quilombola; transformação social; ecoar vozes.