Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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“POR QUE NÃO PODEMOS SER MÃES?”: O DIREITO NEGADO À MULHERES QUE VIVENCIAM A MATERNIDADE NAS RUAS
Cristina Elisa Nobre Schiavi, Letícia Becker Vieira, Adriana Roese Ramos, Vania Celina Dezoti Micheletti

Última alteração: 2021-12-18

Resumo


Introdução: O exercício compreender as vivências de mulheres que tiveram sua trajetória de vida marcada pela situação de rua envolve o posicionamento e o compromisso ético, estético e político em nomear e denunciar as desigualdades e violações de direitos direcionadas a elas, que ganham forma e força nas relações de gênero, raça, classe, território e outras. Nesse sentido, toma-se a pluralidade das existências de mulheres que vivenciaram a maternidade nas ruas para refletir como esses processos produzem linhas de força que se materializam nos seus modos de ser e estar no mundo. Cabe pontuar que os sistemas de poder que estruturam e sustentam a base da nossa sociedade - patriarcado, colonialismo e capitalismo - são materializados de diversas formas, porém, respingam com muito mais intensidade e perversidade nos corpos negros, pobres, periféricos e femininos. Nessa direção, precisamos estar cada vez mais próximos das ditas minorias sociais, que são as mais impactadas pela ausência de recursos mínimos de vida, como as mulheres que ocupam e habitam as ruas das cidades. No que diz respeito à vivência da maternidade por essas mulheres, revela-se que elas são interpeladas pela idealização social do feminino pautado na moral conservadora e pela idealização romântica da maternidade, que é visivelmente seletiva. Em face desse entendimento, o exercício da maternidade por elas é fundamentalmente inaceitável e incompatível com as expectativas estabelecidas para o que se espera de uma mulher, pois elas colocam em xeque o modelo culturalmente construído e enraizado na nossa sociedade. Objetivo: Compreender a experiência da maternidade por mulheres que tiveram a sua trajetória de vida marcada pela situação de rua, a partir do entendimento do fenômeno da maternidade enquanto uma vivência que abarca os pensamentos e sentimentos sobre ser mãe, a gestação, o parto, o vínculo entre mãe-bebê e a criação dos filhos, assim como a compreensão do próprio contexto no qual a mulher vive e dá sentido à sua existência no mundo. Método: Trata-se de estudo de natureza qualitativa com caráter exploratório-descritivo que teve como cenário de pesquisa um Consultório na Rua, que é um importante serviço de saúde voltado para a assistência à População em Situação de Rua na capital gaúcha. As participantes do estudo foram quatro mulheres em idade reprodutiva e que tiveram a sua trajetória de vida marcada pela vivência da maternidade em situação de rua. As informações foram coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas, sendo que o período de coleta de dados ocorreu nos meses de junho a agosto de 2019. As informações foram analisadas a partir da Análise Temática proposta por Minayo. Foram considerados os aspectos bioéticos e legais de pesquisas que envolvem seres humanos e este estudo foi devidamente aprovado nos respectivos Comitês de Ética em Pesquisa sob CAAE nº 03883018.1.0000.5344 e nº 03883018.1.3001.5338. Resultados: Revela-se que ao serem questionadas a respeito de como se percebem enquanto mães em situação de rua, as mulheres entrevistadas neste estudo expressam que nunca imaginaram ter um filho nesta condição e que não almejam esse modo de (sobre)viver para eles. Torna-se explícito o quanto se sentem desprotegidas na rua e o quanto desejam um local seguro e acolhedor para planejar e organizar a vida. Para elas, ter uma casa para morar é sinônimo de tranquilidade, conforto, amparo e dignidade. Assim, a maternidade vivenciada por elas é encarada como um momento complicado, difícil e sofrido, ao passo que envolve inúmeras lutas e enfrentamentos do cotidiano de vida nas ruas.  O momento da gestação nas ruas é constantemente interpelado por sensações de medo e apreensão em relação ao direito à maternidade. As frequentes retiradas compulsórias dos bebês de mulheres com trajetória de rua nas maternidades públicas em todo o país fazem emergir o receio de que seus bebês também sejam brutalmente sequestrados, tão somente pelo fato de se encontrarem em situação de rua, capturando-se as suas possibilidades de serem mães. Assim, elas vivem o momento da gestação em meio a incertezas e inseguranças no que diz respeito ao seu futuro e de seus filhos. Por conta dessa conjuntura e na tentativa de constituir uma maternidade possível, acabam não buscando os serviços de saúde para o acompanhamento pré-natal. Desse modo, se afastam de espaços que deveriam acolhê-las, protegê-las e cuidá-las. Ao adentrarem as maternidades no momento do parto, fica evidente o descuidado e a discriminação dessas mulheres pelo fato de terem a sua vida marcada pela trajetória de rua. Desvela-se que elas são privadas de amamentarem, de cuidarem e de minimamente estabelecerem vínculo com seus filhos, ao passo que são separadas deles sem explicações ou justificativas plausíveis. Ademais, a saída dos hospitais é marcada pelo sequestro - ou tentativa de - dos bebês dessas mulheres. Elas saem das maternidades sozinhas, sem nem saber para onde levaram seus filhos, e acabam não recebendo mais notícias sobre eles.  Desse modo, a separação dessas mulheres e seus filhos abre portas para a tutela sob os corpos e vidas dessas crianças. As entrevistadas contam que seus filhos são retirados de seus braços ainda nas maternidades públicas, são levados compulsoriamente para o abrigamento institucional, e uma vez nessas instituições, o foco é a adoção por outras famílias, mesmo que sem o seu conhecimento ou consentimento. É negada qualquer possibilidade de contato ou vínculo, sendo tratadas com descaso, desconfiança e desinformação. Logo, outros tantos direitos são violados e esses casos ficam no esquecimento, emergindo uma sensação de impotência entre essas mulheres frente aos inúmeros empecilhos e obstáculos que vão de encontro às suas lutas pela retomada da guarda de seus filhos. Diante desse contexto, evidencia-se que a captura da possibilidade da maternidade por essas mulheres acontece sem sutileza, mas marcada por dor, sofrimento e traumas irreparáveis. Considerações finais: A partir deste estudo é possível concluir que a vivência da maternidade por mulheres com trajetória de rua tem sido pautada em discriminações, violências e violações de direitos. Em nome de uma suposta proteção das crianças, rompem-se os laços entre mães e filhos, atropelam-se as possibilidades de vínculo e anula-se brutalmente o afeto, cerceando-se o exercício da maternidade por mulheres que têm suas existências marcadas pela vida nas ruas.  Ao invés de se concretizarem estratégias de auxílio às mulheres com trajetória de rua para o cuidado e criação de seus filhos, a partir da criação e execução de políticas públicas, o que acontece é uma apropriação desses corpos em favor de um ideal do que significa ser mãe em uma sociedade patriarcal, racista e elitista. A sustentação dessa lógica acaba negando às mulheres a possibilidade de autonomia sob seus corpos, impondo-se quem tem ou não o direito de exercer a maternidade. O controle aparece travestido de cuidado, e um cuidado fortemente associado à lógica da responsabilização, mediante um discurso condenatório que explica as trajetórias dessas mulheres exclusivamente por suas escolhas individuais, desconsiderando-se as bases estruturais da nossa sociedade. Encerramos essa escrita pontuando que o nosso primeiro fazer é romper com o silêncio, trazendo para discussão essa temática que se configura como um importante problema de saúde pública inscrito em um contexto histórico, político, econômico, social e cultural impossível de ser ignorado. Mas mais do que isso, precisamos transpassar o discurso e nos implicar nas reivindicações e resistências dessas mulheres, apostando na potência da composição corpo-a-corpo ao longo desta caminhada.