Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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“TROQUE A FOME POR FLOR”: EXPERIÊNCIAS DE UM COLETIVO DE GERAÇÃO DE RENDA E EDUCAÇÃO FINANCEIRA PARA A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA
Cristina Elisa Nobre Schiavi, Lorenzo Dovera, Themis Maria Dresch da Silveira Dovera, Letícia Becker Vieira, Adriana Roese Ramos

Última alteração: 2021-12-19

Resumo


Introdução: Este trabalho versa sobre as experiências do Coletivo Troque a Fome por Flor, um projeto independente que nasce a partir da constatação da ineficácia das políticas públicas voltadas para a População em Situação de Rua (PSR) no município de Porto Alegre, sobretudo quando se pretende proporcionar não só mais dignidade, como também a construção de novos projetos de vida para essas pessoas. Além do mais, os impactos decorrentes da pandemia da Covid-19 fizeram com que a PSR ficasse ainda mais fragilizada e desassistida quanto às necessidades básicas de vida, o que nos convoca ao desafio de um olhar sensível e de um compromisso ético, estético e político para com essas pessoas. Então, lançando mão de uma alternativa que de fato pudesse fazer sentido para elas, considerando suas singularidades, necessidades, potencialidades e desejos que, em geral, vão além do que pode ser buscado e alcançado dentro dos tantos aprisionamentos dos espaços institucionais, pensamos na importância da consolidação de estratégias mais próximas do cotidiano e de cada subjetividade. Mais especificamente, uma estratégia que pudesse trazer novas oportunidades e possibilidades de inclusão no mundo do trabalho e de produção de vida para essas pessoas, haja vista que o trabalho valoriza o sujeito e ressignifica a sua existência no mundo social. Nessa direção, pretende-se resgatar a geração de renda e a educação financeira enquanto estratégias de resistência possíveis em contraponto aos abalos da pandemia e ao desmonte das políticas públicas no país. Objetivo: O objetivo deste trabalho é relatar as experiências do Coletivo Troque a Fome por Flor, um projeto de geração de renda e educação financeira para a população em situação de rua desenvolvido no município de Porto Alegre durante a pandemia da Covid-19. Método: Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, de caráter descritivo, do tipo relato de experiência, elaborado a partir das vivências de idealizadores e apoiadores do Coletivo durante o período de maio a dezembro de 2021. Tendo em vista as perspectivas da geração de renda e da educação financeira, na véspera da data em que se comemora o dia das mães, surgiu a ideia de substituirmos os cartazes que pessoas em situação de rua carregavam pelas sinaleiras da cidade contendo os dizeres “Tô com fome, me ajude” por outros que proporcionassem mais dignidade e outras possibilidades de ser e estar no mundo para essas pessoas. A escolha das mudas de flores como algo a ser trocado foi para aproveitar a data comemorativa, na qual é comum as pessoas presentearem suas mães com flores. Assim, os participantes do projeto recebem tanto as mudas de flores para serem comercializadas, quanto um outro cartaz, desta vez, com os dizeres: “Troque a Fome por Flor”. Foi assim que surgiu o nome do Coletivo, que passou a se reunir três vezes na semana, no período da manhã, em frente ao Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro POP) denominado Pop Rua RS, local escolhido como ponto de referência para os floristas iniciarem as suas jornadas diárias de trabalho. Considerando-se o incentivo à valorização do seu próprio trabalho e do lucro proveniente dele, o Coletivo mantém o seguinte modo de funcionamento: cada novo florista, depois de conseguir vender duas mudas de flores iniciais que são doadas pelo Coletivo para que a pessoa se experimente nas vendas, passaria a colaborar com metade do valor unitário de cada muda (R$0,50) que escolhesse. O restante do recurso financeiro necessário é arrecadado por meio de doações advindas de pessoas ou empresas interessadas no projeto, através das redes sociais ou do próprio boca-a-boca nas ruas. Assim, é possível dar continuidade ao projeto, pois viabiliza a compra de mais mudas para que possam ser contemplados cada vez mais floristas no Coletivo. Nos encontros, além da entrega das mudas de flores, também são produzidos os cachepôs, a partir da combinação de caixas de leite recicladas com folhas de revistas usadas. Este é um dos diferenciais do projeto, pois cada cachepô é único e sustentável, criando-se, assim, consciência coletiva.  Resultados e impactos: A partir da experiência do Coletivo Troque a Fome por Flor foi possível observar importantes impactos na vida dos floristas, sobretudo no sentido de garantia de direitos fundamentais para uma vida mais digna. Hoje, o projeto conta com cerca de 40 floristas espalhados pela cidade e a renda arrecadada na venda das mudas de flores, chegando a 1000% do valor inicial repassado ao Coletivo, tem os auxiliado nas suas demandas de vida diárias, que são muito particulares entre si, indo desde alimentos, vestimentas, produtos de higiene, medicamentos, passagem de ônibus, aluguel e etc. Com a chegada do inverno na capital gaúcha, tivemos relatos de participantes que utilizaram o recurso das vendas para alugar um quarto em uma pousada ou hotel para passar as noites de frio e chuva intensos. Atualmente, estamos vivendo um momento no coletivo em que floristas mais antigos já estão conseguindo se organizar melhor financeiramente. Esse cenário tem viabilizado que a renda seja destinada não somente para a própria (sobre)vivência nas ruas, como também para a aquisição de recursos que lhes façam sentido na vida. Há floristas, inclusive, que conseguem ajudar financeiramente as suas famílias, o que tem repercutido em novas possibilidades de relações e retomada de vínculos. Alguns participantes tem vivenciado grandes repercussões do Coletivo em suas vidas, de modo que o sucesso das vendas de flores fez com que emergisse a esperança da mudança, demandando por moradia. Na medida do possível, nossos esforços foram direcionados para que essa expectativa se concretizasse. Assim, iniciou-se o assentamento de determinados floristas e suas famílias em um bairro da zona sul da cidade. Até o presente momento, cinco famílias já conseguiram estruturar suas casas e estão construindo novos projetos de vida. Considerações finais: A partir das experiências do Troque a Fome por Flor, foi possível desvelar que os principais objetivos do projeto são a geração de renda e o estímulo à educação financeira entre as pessoas em situação de rua, mas o Coletivo tem proporcionado muito mais do que a produção e venda de mudas de flores em cachepôs criativos e sustentáveis. Em poucos meses, criou-se uma verdadeira rede de colaboração, troca e cuidado. Os encontros são regados a rodas de conversas e músicas, nos quais os floristas e apoiadores vão estabelecendo relações de confiança e corresponsabilização entre si, construindo um ambiente de integração, acolhimento, cuidado e cidadania. Assim, a constituição de uma lógica de coletividade entre os envolvidos tem propiciado o resgate e o fortalecimento de laços, de redes, de sonhos e de sentidos, por meio da valorização da autonomia e da autoestima dos sujeitos. O Coletivo tem se constituído enquanto uma importante estratégia de resistência em tempos difíceis, ao passo que ocupar a cidade para a venda das mudas de flores é uma forma de se tornar visível e de criar um novo modo de se relacionar com o outro e com a rua, possibilitando novas formas de ser e estar no mundo e ressignificando a relação com o trabalho na vida dos sujeitos.