Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2021-12-21
Resumo
O presente estudo busca compreender como a intersecção entre as categorias gênero, raça/cor e classe social, a que historicamente é submetida a população de mulheres, determina sua relação com o trabalho. Essa intersecção de discriminações vai repercutir nas oportunidades de acesso a bens e serviços sociais e, no acesso diferenciado aos direitos fundamentais, como o trabalho. Por esta razão se faz imprescindível a articulação do conceito de interseccionalidade com as desigualdades sociais e as assimetrias nas relações de trabalho.
A investigação interseccional está atenta à intersecção das relações de poder e é central para pensar a desigualdade social. Para analisar o trabalho feminino é necessário articular as relações de trabalho com as relações sociais. É preciso articular a situação real de classe das pessoas que não são somente trabalhadoras sem raça e sem sexo, pois também são atingidas pela opressão racial e sexual que impactam significativamente sua vida profissional/econômica.
A partir da década de 1970, a inserção das mulheres no mercado de trabalho profissional vem crescendo exponencialmente. O contínuo crescimento da atividade produtiva feminina deve-se a uma combinação de fatores. Mudanças nos padrões de comportamento, nos arranjos familiares, juntamente com o aumento da escolaridade e queda da taxa de fecundidade, são aspectos que têm possibilitado uma redefinição do papel das mulheres em todas as classes sociais.
Entretanto, intensificação da presença feminina no mercado de trabalho tem ocorrido em uma conjuntura político-econômica adversa, que se traduz, para todos os sujeitos que procuram ocupação, na escassez e má qualidade dos postos de trabalho.
Assim, o processo de reestruturação produtiva iniciado no Brasil durante os anos 1980, se intensificou na década de 1990, marcado pela informalização do trabalho, presente na ampliação dos terceirizados/subcontratados, flexibilizados, trabalhadores em tempo parcial, teletrabalhadores, potencializando a precarização das condições de trabalho e vida da classe trabalhadora brasileira.
Desse processo o resultado mais expressivo foi a expansão dos postos de trabalho no setor de serviços. Se ao longo da década de 1980 era relativamente pequeno o número de terceirizados, nas décadas seguintes ele aumentou de forma significativa, ampliando o processo de precarização da força de trabalho no Brasil. Nesse período, a grande inserção das mulheres no mercado de trabalho se deu justamente no setor de serviços, onde grande parte dos postos de trabalho são de tempo parcial, caracterizando uma situação de maior vulnerabilidade, com níveis salariais mais baixos e piores condições de trabalho.
Se o crescimento do número de mulheres inseridas no mercado profissional de trabalho foi constatado em quase todo o mundo desde os anos de 1970, três características do emprego feminino são mais recentes e mantém estreita relação com o processo de globalização econômica e financeira. Em primeiro lugar está o processo de bipolarização do emprego feminino, com um polo predominante constituído pelos setores tradicionalmente femininos, e um polo minoritário constituído de profissões valorizadas, bem remuneradas, profissões essas ocupadas em geral por mulheres brancas, não imigrantes e qualificadas. A segunda característica é a precarização e a vulnerabilidade dos novos postos de emprego. E, por fim, a expansão das atividades relacionadas ao cuidado, ou seja, ocorre a mercantilização de um trabalho tradicionalmente designado às mulheres no âmbito privado, o cuidado com a casa, as crianças, os idosos e os doentes.
Os efeitos da globalização repercutem de maneira desigual sobre o emprego feminino e masculino. As estatísticas sobre o mercado de trabalho mostram que as mulheres não usufruem das mesmas condições que os homens em diversos aspectos, como rendimento, formalização e disponibilidade de horas para trabalhar. Nesse sentido, o trabalho feminino encontra-se, em maior proporção, em postos de trabalhos mais precarizados, representados pelo assalariamento sem carteira assinada, trabalho doméstico, autônomas etc. E, também, as taxas de desemprego total das mulheres são superiores às verificadas para os homens.
Fica claro que a discriminação no mercado de trabalho, que marginaliza algumas pessoas e as impele a aceitarem empregos em tempo parcial, com baixos salários e sem benefícios, ou as torna desempregadas, não atinge de maneira igual todos os grupos.
A forma como os diferentes grupos populacionais se insere no mercado de trabalho retrata uma faceta fundamental da desigualdade. A alta proporção de trabalhadores atingidos pela informalidade, a precariedade e o subemprego mantêm uma estreita relação com o fenômeno da pobreza e da desigualdade.
Assim também acontece com o acesso ao mercado de trabalho, que se dá de forma distinta entre homens e mulheres, e entre as mulheres, a depender da raça/cor, posição de classe e nacionalidade.
A atual condição de precarização e exploração do trabalho não nos permite falar de mulheres de maneira abstrata, como se houvesse uma opressão comum a todas as mulheres. É necessário que o gênero seja pensado em conexão com outros eixos das identidades e opressões e, assim as mulheres sejam consideradas em suas diferenças por classe social, raça/etnia, região, sexualidade e geração. Por isso devemos pensar em mulheres trabalhadoras, mulheres negras, mulheres indígenas. A vigência mesma da questão da mulher trabalhadora indica a heterogeneidade deste coletivo e das relações de trabalho.
Um exemplo da heterogeneidade da classe das mulheres trabalhadoras é o emprego doméstico. Este trabalho ainda é, majoritariamente, realizado pelas mulheres, porém não é realizado nas mesmas condições por todas as mulheres. As mulheres de minorias étnicas, principalmente as mulheres negras, têm sido remuneradas por realizarem serviços domésticos há décadas.
A contratação de outras mulheres para realizarem o trabalho doméstico reforça e perpetua a responsabilidade feminina pela reprodução social e desempenha função regressiva na luta pela igualdade entre homens e mulheres e, entre o grupo das mulheres. Reproduz um sistema consolidado e hierarquizado de gênero, raça/cor e classe.
Grande parte das ocupações feminina se concentra nos segmentos mais precários do mercado de trabalho: trabalhadores por conta própria, serviço doméstico e ocupados sem remuneração. A porcentagem de mulheres ocupadas no serviço doméstico está entre as mais altas nos países latino-americanos. Se somarmos a isso a porcentagem de mulheres ocupadas sem remuneração, chegamos à conclusão que um terço das mulheres que trabalham no Brasil ou não recebem nenhuma remuneração pelo seu trabalho ou estão ocupadas no serviço doméstico. Além disso, grande parte das mulheres ocupadas no serviço doméstico não estão registradas e não gozam dos direitos do trabalho.
O trabalho doméstico ainda é uma das principais fontes de emprego para mulheres negras. Menos da metade dessas mulheres possuem carteira assinada e uma parte delas encontra-se em situação semelhante à de trabalho escravo. Nesse aspecto acontece a fusão da divisão sexual do trabalho com as hierarquias entre as mulheres, caracterizando padrões cruzados de exploração. Portanto a vulnerabilidade não é uma questão feminina, mas sim a vulnerabilidade de determinadas mulheres.
O papel socialmente imposto às mulheres como principal responsável pela vida doméstica, dificulta sua inserção na vida pública. Por esta razão, esse grupo se insere de maneira mais precarizada no mundo do trabalho e são minoria na ocupação de cargos de gerência e chefia e em cargos políticos.
Pode-se destacar que a maior ou menor participação no mercado de trabalho profissional não elimina a subordinação social das mulheres, reproduzidas nas próprias relações de trabalho, nos baixos salários e na persistência da segregação ocupacional.