Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Hábitos alimentares e de higiene bucal de pessoas com transtorno mental: percepções de profissionais de CAPS da cidade de Porto Alegre/RS
Deison Alencar Lucietto, Sandy Azevedo de Souza, Carolina Zancan Kellermann, Juliana Balbinot Hilgert, Fernando Neves Hugo

Última alteração: 2021-12-19

Resumo


Introdução

A saúde bucal, integrante e inseparável da saúde, pressupõe ausência de dor e de alterações em dentes, tecidos de suporte e na boca. Pelas suas dimensões biológicas e subjetivas, possibilita o desempenho da mastigação, deglutição, fonação e o exercício da autoestima e do relacionamento social, sem inibição ou constrangimento.

Vários fatores interferem na saúde bucal, dentre os quais estão microbiota, dieta, higiene bucal, acesso a serviços odontológicos, informação e questões socioeconômicas e culturais mais amplas. Nesse sentido, tanto a alimentação quanto os hábitos de higiene bucal são fatores de risco modificáveis para as principais doenças bucais, cárie e doenças periodontais.

Parcela considerável da população brasileira ainda permanece à margem dos serviços odontológicos no Sistema Único de Saúde. Essa situação parece mais crítica para grupos específicos, a exemplo de pessoas com transtorno mental (TM). Esses transtornos, entendidos como combinações alteradas de pensamentos, percepções, emoções, comportamentos e relacionamentos, podem se apresentar sob diferentes tipos, sendo os mais frequentes a depressão, o transtorno bipolar, a esquizofrenia e outras psicoses, demência e transtornos do desenvolvimento.

Estudos que tratam da saúde bucal de pacientes com TM apontam para a precárias condições clínicas, descaso no acesso aos serviços e necessidade de melhorias na condução de políticas públicas de saúde.

Considerando que a alimentação e o autocuidado bucal são importantes para a saúde e o bem-estar gerais, este estudo teve como objetivo descrever percepções de profissionais de Centros de Atenção Psicossocial sobre os hábitos alimentares e de higiene bucal de pessoas com TM da cidade de Porto Alegre/RS.

Método

Tratou-se de estudo exploratório descritivo com abordagem qualitativa, realizado com 21 profissionais de três CAPS II da Rede de Atenção Psicossocial do munícipio de Porto Alegre/RS. O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa/UFRGS sob o CAAE N°. 73679817.9.0000.5347. A pesquisa empírica foi conduzida através da realização de entrevistas semiestruturadas e de observações nos próprios serviços, no ano de 2019. As informações produzidas nas entrevistas e os registros do diário de campo foram analisados tendo como balizas princípios da Hermenêutica-Dialética, seguindo-as as etapas de escuta intensiva das gravações; elaboração das categorias teóricas e empíricas; transcrição e primeira categorização; segunda categorização; organização final do banco de dados; leitura exaustiva; análise do material (identificação de semelhanças e diferenças); síntese; e, interpretação.

Resultados

Segundo os entrevistados, parcela considerável dos usuários dos CAPS apresentava precárias condições de vida, representadas por baixa renda, moradia inadequada em habitações precárias, pensões ou em situação de rua que, associadas à gravidade do TM repercutiam negativamente no cuidado com o corpo e no acesso a serviços de saúde de saúde mental/bucal.

A maioria dos profissionais possuía informações sobre os hábitos alimentares dos usuários, decorrentes de anamnese, questionamentos aos familiares ou através da observação durante as refeições oferecidas nos CAPS. Alguns justificaram essa busca por informações/postura pois o uso de psicofármacos pode desenvolver doenças metabólicas, ficando a sua relação com a saúde bucal em segundo plano ou não contemplada.

Já, quando questionados sobre sua avaliação dos hábitos alimentares, em relação ao consumo de alimentos e bebidas doces/com açúcar, a totalidade dos entrevistados os classificou de forma negativa, variando desde “ruins” até “muito ruins”, embora nos CAPS a alimentação tenda a ser mais equilibrada e/ou oferecida a partir de orientação de nutricionistas (especialmente para indivíduos com condições de saúde específicas, como diabetes).

Os principais motivos associados aos inadequados hábitos alimentares foram as precárias condições socioeconômicas, as limitadas condições de moradia, o tipo de TM e os efeitos das medicações utilizadas. Alguns destacaram que a “oralidade” e “voracidade”, bastante observadas nos usuários acompanhados, influenciam negativamente na “compulsão por doces”. Segundo entrevistados, este elevado consumo de alimentos/bebidas doces funciona como verdadeira “válvula de escape” para as angústias e dificuldades enfrentadas por muitos indivíduos. Vale ressaltar, que as condições psíquicas dos usuários também foram relacionadas a outros determinantes da saúde/saúde bucal, como o tabagismo e o consumo de bebidas alcóolicas.

De modo semelhante, verificou-se que todos os entrevistados possuíam informação sobre os hábitos de higiene bucal dos usuários, embora alguns de forma indireta, apenas por observação da situação bucal.

Quando indagados sobre como avaliavam a higiene bucal dos indivíduos acompanhados, a totalidade referiu como “ruim” ou “muito ruim”, sendo a precariedade da higiene bucal ponto comum ao longo das entrevistas.

Dentre os motivos identificados para essa avaliação foram apontados: o tipo/gravidade de TM; as precárias condições financeiras; a falta de acesso a informações e a serviços de saúde bucal; a falta de produtos de higiene bucal; falta de cuidados de familiares no domicílio; e a influência de questões culturais. De modo pontual, profissionais chamaram a atenção para o hábito do tabagismo, como mais um agravante da higiene bucal.

Houve entendimento comum de que os cuidados com o corpo e com a higiene em geral são bastante difíceis nas pessoas com TM. Segundo alguns, o “abandono do corpo” pode estar relacionado à própria condição psíquica dos usuários. Entretanto, na visão de uma profissional (sendo essa uma visão mais distinta), o fator que mais pesaria na negligência do autocuidado seria a questão cultural.

Mesmo com distintas percepções, houve consenso que a realização da higiene bucal pelos usuários é mais “complicada” do que a higiene corporal (já difícil para muitos), uma vez que demanda mais produtos, tempo e complexidade de execução. Além disso, foi ressaltada a questão da menor importância relativa da “boca” e dos “dentes” para os usuários.

É importante destacar, também, a percepção geral de que os indivíduos com TM mais graves e com piores condições de vida apresentam pior higiene corporal e bucal. Nesse sentido, poucos são os que realizam esse tipo de cuidado.

Considerações finais

Este estudo identificou, a partir da percepção de profissionais de CAPS da cidade de Porto Alegre/RS, que as pessoas com TM acompanhadas apresentam inadequados hábitos alimentares e precárias condições de higiene bucal, embora com variações individuais.

Ficou evidente que a adoção de hábitos alimentares saudáveis, um grande desafio para a população em geral, é ainda mais difícil para os usuários dos CAPS. De modo análogo, o autocuidado bucal foi considerado com um grande desafio, constatado a partir das grandes limitações quanto à realização da higiene bucal.

Tipo e gravidade do TM, utilização de psicofármacos, precárias condições de vida (incluindo abandono e exclusão de muitos) e aspectos culturais desfavoráveis evidenciaram que pessoas atendidas em CAPS apresentam “sobrecarga” de desvantagens pessoais, familiares e sociais, os quais repercutem negativamente em determinantes de sua saúde.

Considerando que a alimentação é fator de risco comum a várias doenças crônicas e que cuidados com o corpo/boca influenciam no bem-estar/na socialização dos indivíduos, identificou-se que há ainda há grandes desafios para que pessoas com TM tenham seus direitos de cidadania garantidos. Mesmo que os profissionais se esforcem para estimular o autocuidado, fatores como condição de saúde/de vida dos usuários agravam a situação, demandando intervenções intersetoriais pautadas na corresponsabilização do Estado, das famílias e dos próprios indivíduos.