Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-01-30
Resumo
Introdução: Estudo original resultante de uma tese de doutorado sobre a produção desejante do percurso da profissão Agente Comunitária de Saúde (ACS). No Ceará as ações das ACS emergiram a partir de experiências comunitárias vinculados a instituições religiosas que prestavam atendimento na área da saúde, tais como a Pastoral da Criança e as comunidades eclesiásticas de base, sendo depois utilizada como um projeto governamental no combate a seca que assolou o sertão do Ceará na década de 1980. Finalizado o projeto o governo do Estado do Ceará incorporou o ACS na estrutura organizacional do setor saúde, criando em 1991 o Programa Agente de Saúde. O ACS é um profissional exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) e foi inserido muito recentemente na história das profissões da saúde, e, portanto, o núcleo teórico e pedagógico que conforma os seus processos formativos constitui espaço de disputas diversas. Os ACS são legítimos mobilizadores sociais que tem como campo de atuação o território onde vive, trabalha e relaciona-se com o mundo da comunidade e do serviço de saúde. Nesse sentido, o processo de territorialização nasce com conotação material e simbólica, uma vez que o território é sempre múltiplo, diverso, ou ainda um movimento complexo de territorialidades, que inclui a vivência concomitante de diversos territórios - configurando uma multiterritorialidade, ou mesmo a construção de uma territorialização em movimento com necessidade de revisão permanente de seus fluxos, contornos e desenhos. Este estudo tem como objetivo cartografar os afetos e as afecções produzidas pelas ACS ao longo de sua trajetória profissional. Desenvolvimento: Trata-se de uma pesquisa qualitativa com suporte teórico metodológico da cartografia. A cartografia consiste num método de pesquisa qualitativa, em que o pesquisador e a pesquisadora estão inseridos numa relação implicacional com o objeto de estudo construída “em” e “no” processo. Ou ainda, movimento relacional, onde objeto e sujeito, teoria e prática são agenciados pelo pesquisador e pela pesquisadora, em um mesmo plano - a experiência; atuando como um dispositivo na produção do conhecimento traçada através de linhas de subjetividades que se entrelaçam nos territórios existenciais e coexistindo em trocas e invenção/reinvenção de saberes e práticas. Para produção dos dados utilizamos oficinas mediatizada pela arte e entrevista cartográfica. Participaram deste estudo as 9 ACS classificadas pelo coletivo ACS como as pioneiras. São todas mulheres, 3 residente na zona rural e 6 na zona urbana. As informações produzidas foram organizadas em núcleos narrativos compostos por linhas, fluxos e platôs. O cenário do estudo foram os municípios de Tauá e Aiuaba, localizado no sertão dos Inhamuns, região do semiárido do Ceará. Resultados: Dos discursos das ACS emergiram vários núcleos de sentidos, neste recorte apresentaremos dois: (1) torna-se ACS: rupturas sociais do ser mulher no sertão e (2) Desafios e desejos para o ingresso no programa. O ano de 1989 foi um acontecimento na vida de muitas mulheres dos municípios de Tauá e Aiuaba, com a possibilidade de encontrar um trabalho, mesmo que sem reconhecimento social e com pouca valorização econômica. Nos discursos percebemos a figura do homem como impeditivo do trabalho das mulheres, como pode ser evidenciado na fala de Jurema(A3) ao evocar [...] aprendi a andar de moto porque meu marido não queria que eu trabalhasse, queria que eu ficasse em casa, mas eu não queria, queria era formar meus filhos[...] ai peguei a moto dele um dia aprendi sozinha [...]. Dentre os desafios apontados destaca-se o enfrentamento machista que define o lugar da mulher sertaneja como do “terreiro” para dentro de casa e o medo de não ingressar no programa pela baixa escolaridade. Neste sentido, as ACS pioneiras, que ingressaram no PACS entre 1987 e 1990 são reconhecidas como as desbravadoras da profissão. Nas falas de Juá(A31) e Palma(A32) percebemos esse pioneirismo e orgulho [...] Eu acho que eu entrei em 1988, fui das primeiras, fui da abertura do programa. Acho que Tauá foi um dos primeiros municípios a começar. Eu entrei em fevereiro de oitenta e sete, já tô com trinta anos, mais de trinta anos. Eu lembro que foi vinte de fevereiro e não tô lembrando o ano agora não. Foi só seis meses, que geralmente é seis meses, aí a gente continuou o trabalho mesmo voluntário porque naquela época tinha muita carência [...]. Entrar no PACS é considerado como um desafio para as ACS, uma vez que elas tiveram que romper barreiras sociais e pessoais, como por exemplo deixar de exercer a função apenas de mãe e dona de casa, para se enveredar pelo mundo do trabalho, muitas vezes tendo que deixar os filhos com outras pessoas ou familiares, como verbalizado por Valentina (A2): [...] “Foi muito difícil no tempo que eu entrei, eu tinha duas filhas, minha mãe morava próximo e ficava com elas. O modo de ingresso no mundo do trabalho das ACS se apresenta de forma diferente no espaço geográfico, temporalmente e na esfera institucional, mas na maioria das vezes se deu por meio de seleção, com critérios pré-estabelecido, que ao longo dos tempos foram se modificando, passando por processo de entrevista no início e depois para prova escrita associada a entrevista individual e coletiva, conforme vocalizados nos discursos: [...] quando eu entrei para o programa, saiu aviso no rádio que ia ter inscrição... eu me inscrevi, eu fui classificada em 3º lugar, mas ai como primeira e a segunda não morava na área eles me chamaram[...]não teve prova, foi só entrevista e a gente passava o dia todo naquele BNB Club, sendo observada sem saber. Considerações: Ao longo de mais de 30 anos de existência a profissão ACS tem demostrado sua potência na produção do cuidado comunitário realizado no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS). As pioneiras revelam em seus discursos movimentos de desterritorialização do papel da mulher na sociedade, colocando-a como protagonista no mundo do trabalho. Desvela-se, também, no interdiscurso a organização de seu trabalho, pautada em diretrizes da territorialização, criação de vínculos; trabalho multiprofissional, foco em ação preventiva; visando à promoção da saúde. Na atualidade e dada as mudanças ocorridas o cuidado em saúde se caracteriza pela sua abrangência, complexidade e pela diversificação de ações, cenários e atores, sendo os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) ao longo de sua trajetória considerados sujeitos imprescindíveis no processo de cuidar, superando o modelo assistencialista e promovendo novas formas de (re) existência e resistência no cotidiano destas trabalhadoras. O vínculo torna-se uma tecnologia capaz de promover ações mais eficazes para a tomada de decisões nas condutas de cuidado, sendo o ACS um ator estratégico para conversar com as pessoas por meio do estreitamento do contato com elas que a suas atribuições proporcionam. A história das ACS estão tatuada em seus corpos como lembranças das lutas e resistências que tiveram que enfrentar e mesmo em tempos difíceis foi possível florescer no sertão.
Descritores: Agente comunitário de saúde; cartografia; corpo.