Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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AGENTES COMUNITÁRIAS DE SAÚDE E “O FLORESCER NO SERTÃO”: CORPOGRAFIAS DAS PIONEIRAS
Olga Maria Alencar, Maria Rocineide Ferreira da Silva, Rafael Bezerra Duarte, Mirna Neyara Alexandre de Sá Barreto Marinho, Luiza Helena Almeida Alves, Mariana Graziela de Sousa, Solange Maria Lima Lacerda e Silva, Antonilene Bezerra Silva Magalhães

Última alteração: 2022-01-30

Resumo


Introdução: Estudo original resultante de uma tese de doutorado sobre a produção desejante do percurso da profissão Agente Comunitária de Saúde (ACS). No Ceará as ações das ACS emergiram a partir de experiências comunitárias vinculados a instituições religiosas que prestavam atendimento na área da saúde, tais como a Pastoral da Criança e as comunidades eclesiásticas de base, sendo depois utilizada como um projeto governamental no combate a seca que assolou o sertão do Ceará na década de 1980. Finalizado o projeto o governo do Estado do Ceará incorporou o ACS na estrutura organizacional do setor saúde, criando em 1991 o Programa Agente de Saúde. O ACS é um profissional exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS)  e foi inserido muito recentemente na história das profissões da saúde, e, portanto, o núcleo teórico e pedagógico que conforma os seus processos formativos constitui espaço de disputas diversas. Os ACS são legítimos mobilizadores sociais que tem como campo de atuação o território onde vive, trabalha e relaciona-se com o mundo da comunidade e do serviço de saúde. Nesse sentido, o processo de territorialização nasce com conotação material e simbólica, uma vez que o território é sempre múltiplo, diverso, ou ainda um movimento complexo de territorialidades, que inclui a vivência concomitante de diversos territórios - configurando uma multiterritorialidade, ou mesmo a construção de uma territorialização em movimento com necessidade de revisão permanente de seus fluxos, contornos e desenhos. Este estudo tem como objetivo cartografar os afetos e as afecções produzidas pelas ACS ao longo de sua trajetória profissional.  Desenvolvimento: Trata-se de uma pesquisa qualitativa com suporte teórico metodológico da cartografia. A cartografia consiste num método de pesquisa qualitativa, em que o pesquisador e a pesquisadora estão inseridos numa relação implicacional com o objeto de estudo construída “em” e “no” processo. Ou ainda, movimento relacional, onde objeto e sujeito, teoria e prática são agenciados pelo pesquisador e pela pesquisadora, em um mesmo plano - a experiência; atuando como um dispositivo na produção do conhecimento traçada através de linhas de subjetividades que se entrelaçam nos territórios existenciais e coexistindo em trocas e invenção/reinvenção de saberes e práticas. Para produção dos dados utilizamos oficinas mediatizada pela arte e entrevista cartográfica. Participaram deste estudo as 9 ACS classificadas pelo coletivo ACS como as pioneiras. São todas mulheres, 3 residente na zona rural e 6 na zona urbana. As informações produzidas foram organizadas em núcleos narrativos compostos por linhas, fluxos e platôs. O cenário do estudo foram os municípios de Tauá e Aiuaba, localizado no sertão dos Inhamuns, região do semiárido do Ceará.  Resultados: Dos discursos das ACS emergiram vários núcleos de sentidos, neste recorte apresentaremos dois: (1) torna-se ACS: rupturas sociais do ser mulher no sertão e (2) Desafios e desejos para o ingresso no programa. O ano de 1989 foi um acontecimento na vida de muitas mulheres dos municípios de Tauá e Aiuaba, com a possibilidade de encontrar um trabalho, mesmo que sem reconhecimento social e com pouca valorização econômica. Nos discursos percebemos a figura do homem como impeditivo do trabalho das mulheres, como pode ser evidenciado na fala de Jurema(A3) ao evocar [...] aprendi a andar de moto porque meu marido não queria que eu trabalhasse, queria que eu ficasse em casa, mas eu não queria, queria era formar meus filhos[...] ai peguei a moto dele um dia aprendi sozinha [...]. Dentre os desafios apontados destaca-se o enfrentamento machista que define o lugar da mulher sertaneja como do “terreiro” para dentro de casa e o medo de não ingressar no programa pela baixa escolaridade. Neste sentido, as ACS pioneiras, que ingressaram no PACS entre 1987 e 1990 são reconhecidas como as desbravadoras da profissão. Nas falas de Juá(A31) e Palma(A32) percebemos esse pioneirismo e orgulho [...] Eu acho que eu entrei em 1988, fui das primeiras, fui da abertura do programa. Acho que Tauá foi um dos primeiros municípios a começar. Eu entrei em fevereiro de oitenta e sete, já tô com trinta anos, mais de trinta anos. Eu lembro que foi vinte de fevereiro e não tô lembrando o ano agora não. Foi só seis meses, que geralmente é seis meses, aí a gente continuou o trabalho mesmo voluntário porque naquela época tinha muita carência [...]. Entrar no PACS é considerado como um desafio para as ACS, uma vez que elas tiveram que romper barreiras sociais e pessoais, como por exemplo deixar de exercer a função apenas de mãe e dona de casa, para se enveredar pelo mundo do trabalho, muitas vezes tendo que deixar os filhos com outras pessoas ou familiares, como verbalizado por Valentina (A2):  [...] “Foi muito difícil no tempo que eu entrei, eu tinha duas filhas, minha mãe morava próximo e ficava com elas. O modo de ingresso no mundo do trabalho das ACS se apresenta de forma diferente no espaço geográfico, temporalmente e na esfera institucional, mas na maioria das vezes se deu por meio de seleção, com critérios pré-estabelecido, que ao longo dos tempos foram se modificando, passando por processo de entrevista no início e depois para prova escrita associada a entrevista individual e coletiva, conforme vocalizados nos discursos: [...] quando eu entrei para o programa, saiu aviso no rádio que ia ter inscrição... eu me inscrevi, eu fui classificada em 3º lugar, mas ai como primeira e a segunda não morava na área eles me chamaram[...]não teve prova, foi só entrevista e a gente passava o dia todo naquele BNB Club, sendo observada sem saber.  Considerações: Ao longo de mais de 30 anos de existência a profissão ACS tem demostrado sua potência na produção do cuidado comunitário realizado no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS). As pioneiras revelam em seus discursos movimentos de desterritorialização do papel da mulher na sociedade, colocando-a como protagonista no mundo do trabalho. Desvela-se, também, no interdiscurso a organização de seu trabalho, pautada em diretrizes da territorialização, criação de vínculos; trabalho multiprofissional, foco em ação preventiva; visando à promoção da saúde. Na atualidade e dada as mudanças ocorridas o cuidado em saúde se caracteriza pela sua abrangência, complexidade e pela diversificação de ações, cenários e atores, sendo os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) ao longo de sua trajetória considerados sujeitos imprescindíveis no processo de cuidar, superando o modelo assistencialista e promovendo novas formas de (re) existência e resistência no cotidiano destas trabalhadoras. O vínculo torna-se uma tecnologia capaz de promover ações mais eficazes para a tomada de decisões nas condutas de cuidado, sendo o ACS um ator estratégico para conversar com as pessoas por meio do estreitamento do contato com elas que a suas atribuições proporcionam. A história das ACS estão tatuada em seus corpos como lembranças das lutas e resistências que tiveram que enfrentar e mesmo em tempos difíceis foi possível florescer no sertão.

Descritores: Agente comunitário de saúde; cartografia; corpo.