Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Análise das condições trabalhistas de médicos e enfermeiros na Estratégia Saúde da Família em municípios rurais remotos
Cassiano Franco, Patty Almeida, MÁRCIA FAUSTO

Última alteração: 2022-01-05

Resumo


Apresentação

Uma importante dificuldade para o cuidado em saúde é a crise da força de trabalho em saúde, que afeta todos os países, sensivelmente em suas áreas rurais e remotas. Estima-se que metade da população mundial viva nessas áreas, enquanto apenas 25% dos médicos trabalham nelas. Uma multiplicidade de fatores determina a escassez e a falta de atração e fixação de profissionais de saúde em territórios rurais e remotos: o próprio sentido de desenvolvimento, da escala local ao global; o aumento de demandas por trabalhadores de saúde com novas tecnologias e modos de atenção; disparidades urbano-rurais na constituição de redes de serviços e nas condições de trabalho; a complexidade do mercado de trabalho em saúde e suas dificuldades de regulação.

No Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a implementação da Estratégia Saúde da Família (ESF) como forma de reorientação do modelo assistencial a partir da Atenção Primária à Saúde (APS) abriram amplas frentes de trabalho na busca pelos preceitos da universalidade, equidade e integralidade.

Os desafios sobre força de trabalho é uma questão central para a saúde rural. Problemas de atração e fixação de profissionais de saúde em zonas rurais remotas precisam em grande medida de iniciativas públicas, como o Programa Mais Médicos (PMM) no Brasil, com forte dependência de médicos oriundos de países estrangeiros. Populações de áreas rurais remotas têm evidentes barreiras de acesso a serviços de saúde. Tanto usuários quanto gestores são vulneráveis nessas áreas à escassez da oferta de profissionais de saúde, especialmente de médicos.

O objetivo deste trabalho é analisar a força de trabalho de médicos e enfermeiros na APS em municípios rurais remotos (MRR) em suas condições trabalhistas, buscando identificar um panorama da força de trabalho em saúde com vistas ao aperfeiçoamento das políticas para provimento de profissionais em contexto de ruralidade.

Desenvolvimento do trabalho

Este trabalho integra a pesquisa “Atenção Primária à Saúde em Munícipios Rurais Remotos no Brasil”, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz. Foi feito estudo qualitativo em 27 dos 323 MRR da tipologia urbano-rural do IBGE. Realizou-se entrevistas semiestruturadas com informantes-chave, entre eles os gestores municipais. Registros de campo constituiram um banco de dados objetivos de fontes primárias dos municípios visitados.

Neste trabalho, foram analisadas 51 entrevistas com gestores, além do banco de dados da pesquisa. Para compreender as condições de trabalho dos médicos e enfermeiros, executou-se análise temática, orientada por categorias pré-definidas e emergentes segundo a experiência e percepção dos gestores. As categorias incluíram vínculos trabalhistas, salários, carga horária e rotatividade dos profissionais. Também identificou-se o local de graduação dos profissionais, com base no banco de dados referentes aos 45 médicos e 47 enfermeiros participantes da pesquisa. Foram trianguladas as informações das entrevistas e banco de dados, buscando entre as percepções dos gestores convergências e divergências sobre o conteúdo em leitura transversal do material empírico. Apresenta-se uma visão geral dos profissionais médicos e enfermeiros na APS na amostra de MRR e suas condições de trabalho, sem ater-se aos municípios ou territórios da pesquisa isoladamente.

Resultados

Na amostra dos municípios rurais remotos, metade dos médicos se graduou na Bolívia, 31,1% na região sudeste e o restante em Cuba, Paraguai ou na região norte. Em contraste, a maior parte (40,5%) dos enfermeiros se formou na região norte, mas pouco menos de um terço proveio de locais distantes dos territórios da pesquisa, como da região Sul-Sudeste ou mesmo da Bolívia. Entre os médicos predominou o vínculo por meio de bolsa formação do PMM (64,4%) e com menor frequência, outros contratos pouco formalizados como por tempo determinado, autônomo/pessoa jurídica. Observou-se vínculo de médicos servidores públicos estatutários nos municípios do Vetor Centro-Oeste. Entre enfermeiros predominaram contratos por tempo determinado (66%) e vínculo estatutário (21,3%).

O salário era muito variado e discrepante entre médicos e enfermeiros. Foram relatadas remunerações de 6 mil até 40 mil reais para médicos. Em contrapartida, enfermeiros recebiam, segundo os gestores, entre 1,8 mil a 8 mil reais, mais frequentemente entre 2 mil a 3 mil reais. Se, por um lado, não se reportaram grandes dificuldades para contratar enfermeiros, a insuficiência de médicos provocava disputa predatória entre municípios. A Lei de Responsabilidade Fiscal foi mencionada como impeditivo para aumentos salariais de profissionais da saúde. Por outro lado, o PMM atenuava a impossibilidade de remunerar os médicos conforme valores de mercado na maioria dos municípios.

Embora fosse reportada carga horária formal de 40 horas semanais pela maioria dos entrevistados, alguns admitiam acordos para redução, principalmente para profissionais que atuavam nos interiores dos municípios. Foram observados arranjos como profissionais com pactuações de três dias de trabalho mantendo cobertura ao longo de toda a semana, rodízio entre as Unidades Básicas de Saúde e pequenos hospitais do município e alternância entre profissionais de uma mesma equipe para o trabalho em semanas distintas.

Como consequência, havia alta flexibilidade, no entanto, sem fixar profissionais e usuários às equipes da ESF. Os gestores informaram que a maioria das equipes encontrava-se completa, embora se constatasse que parte dos profissionais estava há poucos meses nas UBS. A rotatividade foi considerada um problema somente vinculado à ausência/vacância de médicos.

A rotatividade é evidenciada pelo tempo de atuação dos profissionais. A maioria dos médicos da amostra (68,6%) atuava na equipe há menos de um ano e 84% até dois anos. Para enfermeiros, embora a rotatividade não fosse percebida pelos gestores comprometendo a sustentabilidade das equipes de ESF, a maioria também atuava há pouco tempo: 68% até dois anos. A elevada rotatividade associava-se aos contratos temporários, vínculo predominante dos enfermeiros, que ficavam sujeitos à ingerência da política local.

Exigência de altos salários para médicos, distância da família e da capital do estado, dificuldades de acessibilidade às áreas rurais e influência política foram fatores mencionados como dificultadores da fixação de profissionais em MRR. Além disso, destacou-se também opções limitadas de lazer e de infraestrutura urbana. Contudo, tais características típicas de MRR incidiam mais fortemente na retenção de médicos, posto que os demais profissionais tendiam a aceitar as condições contextuais com menor resistência.

Considerações finais

MRR acentuam a necessidade de uma regulação do mercado de trabalho em saúde com iniciativas públicas e solidárias a nível federal e regional. A recente experiência do PMM demonstrou que estratégias nacionais que envolvem fatores além da provisão são importantes e que esse mercado se manter fechado a médicos formados no Brasil é insustentável para a assistência médica em áreas rurais e remotas. Embora a atração de enfermeiros não tenha sido registrada como um problema, a grande rotatividade também entre estes profissionais compromete a continuidade e qualidade do cuidado na ESF em MRR, o que aponta a necessidade de políticas federais de gestão da força de trabalho em saúde para o conjunto de categorias profissionais que compõem a APS e que garantam vínculos estáveis, não-precarizados e com maior paridade. Ademais, MRR precisam de modelos diferenciados, que atendam à flexibilidade de carga horária – por conta tanto da escassez de profissionais quanto de questões de acesso – sem que se perca o vínculo com usuários e território na APS.