Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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MATANDO O ABUTRE ONTEM COM A PEDRA QUE JOGAMOS HOJE: alimento de espiritualidades e religiosidades como potência para saúde mental?
João Víctor Moreira Gonçalves

Última alteração: 2021-12-21

Resumo


No contexto de incipiência do debate acadêmico-científico sobre as relações entre espiritualidades, religiosidades, principalmente as de matrizes africanas, e práticas de saúde, este trabalho tem como objetivo compartilhar dificuldades e possibilidades de reflexões e reinvenções dos processos de trabalho na produção do cuidado pelo contato com a dimensão espiritual e religiosa em um Centro de Atenção Psicossocial III (CAPS III). Destacam-se as dificuldades em razão das “regras” não ditas do cientificismo e racismo religioso institucional e do fomento das alternativas culturais à medicalização da vida. Tal legitimação dos saberes e práticas populares de saúde, incluindo aqueles resguardados pelas religiosidades de matrizes africanas, caminha na direção da ampliação do leque de teorias, metodologias e ferramentas de cuidado em saúde e da efetivação das diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Quanto à metodologia, entre outubro de 2020 e abril de 2021, foi realizada uma pesquisa-intervenção cartográfica na posição de estagiário-acadêmico de saúde mental do Programa Acadêmico Bolsista da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, em um CAPS III localizado na zona norte do município carioca. Foram registradas, semanalmente, em um diário de campo cartográfico, as dificuldades, reflexões e reinvenções dos processos de trabalho na produção do cuidado pelo contato com espiritualidades e religiosidades. Para destacar as principais dificuldades que emergiram na menção às transversalidades e relevâncias das espiritualidades e religiosidades de usuários, familiares e comunidades junto à equipe do serviço, apresentam-se a seguir as “regras” não ditas do cientificismo e do racismo religioso institucional que frequentemente orientavam os processos de trabalho: 1) Se não for possível ignorar a discussão racial, escute e fale sobre o racismo religioso somente pela racionalidade, jamais pela sensibilidade. Não se abra e se entregue para sentir-se afetar: é um caminho perigoso que pode conduzir à transformações.  2) Corte as conexões entre dimensões e atores o máximo que conseguir. Recorte a relevância da espiritualidade e religiosidade na vida do sujeito apenas para momentos pontuais na evolução de seu quadro. Se for impossível dissimular a tal ponto, defenda a excepcionalidade desse tema apenas para determinado usuário e ninguém mais! 3) Apenas questione, converse e explore tal espiritualidade e religiosidade em seu processo de adoecimento-saúde-intervenção se forem hegemônicas, já que as práticas que as envolvem são mais naturalizadas. Qual o problema de escutar louvor no espaço de convivência? É só uma música tranquilinha. Ponto de Macumba, jamais! Agita os usuários! 4) Por outro lado, se não for possível ignorar a espiritualidade e religiosidade de matrizes africanas, dê o menor espaço possível para perguntas e contações de histórias: subverta informações essenciais para elaboração do PTS em curiosidades supérfluas. 5) Não se deixe ser alvo de críticas. Aponte como a discussão racial e religiosa incomoda colegas de equipe para desfocar as atenções em cima de você. E quando cismarem de falar sobre “preconceito internalizado”, brade que querem deslegitimar toda produção científico-acadêmica sobre sofrimento mental e o cuidado em saúde com mero misticismo. Diante de tal cientificismo e racismo religioso institucional, é preciso destacar que não se trata de deslegitimar os conhecimentos científico-acadêmicos, mas aproximá-los das concepções e valores de usuários, familiares e comunidades para fortificar os diálogos e as alianças com as práticas de cuidado ofertadas pelos profissionais de saúde. Aproximações contrárias à medicalização da vida que, ao impor um sentido unívoco sobre todo sofrimento, alienam o sujeito da sua própria dor, impossibilitando-o de construir, em parceria com sua comunidade e instrumentos do seu território, os sentidos e expressões do próprio adoecimento e, a partir disso, criar processos terapêuticos. Daí a importância da produção de cuidado atenta a compartilhamentos, por exemplo, sobre vivências potencializadoras que se desmancharam ao longo do tratamento, como conta um usuário, durante um atendimento, sobre o período anterior de seu acesso ao serviço: “ficava conversando de meia noite às seis da manhã, pedindo ‘por favor’ pro meu pai Ogum me ajudar, como que ele podia resolver a situação… hoje já não escuto mais vozes”. Assim como sobre a experimentação de novas experiências, como comenta outro usuário, no espaço de convivência, enquanto aguarda a dispensa da medicação: “Eu sei que o remédio é importante, mas quando tive a cirurgia do coração, um aumento de pressão e os problemas mentais começaram, eu passei a ler mesmo a Bíblia… Eu sei que é isso que me estabiliza”. Bem como sobre práticas costumeiras de promoção de saúde, como compartilham, no espaço de convivência, duas usuárias ao comentarem, respectivamente: “Tava com muita dor nas costas e muita debilidade, até para ir no banheiro, e deitei: fiz campanha e em três dias eu tava sem dor nenhuma” e “Fui no banheiro de madrugada e tinha um todo nojento… um espírito, não entendi nada, tava até com meu cigarro. Aí fiz a preparação só como eu sei: séria, pra saúde, não como uns de sacanagem fazem… Coloquei um conhaque branco, caro, e uma vela para São Lázaro. Práticas que, inclusive, podem funcionar como estratégias de prevenção do suicídio, como relata outro usuário, que trabalha como caminhoneiro, durante um acolhimento de primeira vez: “eu não tava bem…ouvi rádio, fiz minhas orações...se acredita em Deus como eu acredito, é só você e Deus ali (na estrada), irmão”. Espiritualidades e religiosidades que também aparecem como recursos para intermediar as relações de usuários com familiares, por exemplo, como repete uma usuária nos atendimentos: “quando sinto que não to bem e a voz pode vir, ou ela já tá ali, mas to tentando ignorá-la, minha mãe já percebe e fala ‘vem cá filha, vamos respirar como o pessoal do CAPS ensinou, vamos dar as mãos e orar um pouco’”.  No espaço de convivência, outra usuária também comenta, ao longo de 21 dias, sua campanha de orações realizada no Monte de Irajá, produzindo outra percepção e cuidado com o território, já que ritualizava a subida de Cristo no Monte das Oliveiras, segundo ela, reunindo diversas pessoas que muitas vezes passavam dias orando, distribuindo água e zelando para não poluir o local. As mediações das relações também respondem aos vínculos entre usuários e familiares e os serviços e equipes de saúde. Como visibilizado pelo discurso de uma usuária que repete nos atendimentos: “rezo todo dia antes de vir aqui para os psicólogos, para vocês me ajudarem, para não me abandonarem”. Mediações que convocam afirmação de qualquer pesquisa-intervenção em saúde como uma atuação necessariamente clínico-política. Em meio a agudização do sofrimento de uma usuária que passou a ver “dez vultos com roupa de nação”, sendo que nove seriam “do mal” e apenas um “lutaria” pelo seu bem-estar, a suspensão de significações do imaginário social racista sobre os cultos de nação e as reverberações do mesmo na usuária, por parte da psicóloga de referência, foram fundamentais para sustentar um espaço-tempo em que a primeira pudesse refletir sobre o racismo religioso e construir seus próprios sentidos para as experiências vivenciadas. Como considerações finais, vale ressaltar que se Exu “matou um pássaro ontem com a pedra que só atirou hoje” para comer amanhã, é preciso seguir aprendendo com o passado para nos firmarmos como agentes de transformação no presente, rumo a um futuro breve não mais assolado pelo abutre do cientificismo e do racismo religioso.