Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
ACESSO E DIAGNÓSTICO TARDIO DE CÂNCER DE MAMA EM MULHERES ASSISTIDAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: REFLEXÕES A PARTIR DAS INTERSECCIONALIDADES ENTRE GÊNERO, RAÇA E CLASSE
Mayara Ciciliotti, Alexandrina Ferreira da Silva, Izabella Santos Pereira

Última alteração: 2022-01-05

Resumo


O câncer de mama resulta do crescimento desordenado de células invasivas, que ocorre a partir de alterações genéticas, as quais podem ser tanto adquiridas quanto hereditárias. Trata-se do tipo de câncer de maior incidência em mulheres no mundo, sendo a principal causa de morte por câncer em mulheres.

O Sistema Único de Saúde (SUS) reconhece a saúde como um direito a ser assegurado pelo Estado, estando fundamentado nos princípios da universalidade, equidade e integralidade. Ou seja, no âmbito legal, adota-se a concepção ampliada de saúde e a obrigatoriedade e a gratuidade do acesso aos bens e serviços de saúde à toda população brasileira. Porém, são comuns as situações que contrastam injustiça social e esses direitos de acesso e acessibilidade.

No Brasil, estimativas do Instituto Nacional do Câncer apontaram 59.700 casos de câncer de mama em 2019, o que representaria 29,5% da incidência de cânceres em mulheres. No tocante às diferenças étnicas, as taxas parecem similares em mulheres negras e brancas. Porém, o índice de mortalidade devido à doença é maior entre mulheres negras. Tais dados apontam para um cenário de disparidade étnica nos índices de sobrevida ao câncer de mama. Dez anos após a doença, apenas 44% das mulheres negras encontravam-se recuperadas, em contraste com 69,5% de mulheres brancas sobreviventes de um câncer. Além disso, as mulheres negras tiveram um pior prognóstico clínico, bem como apresentaram um estadiamento - processo para determinar a localização e a extensão do câncer presente no corpo de uma pessoa - mais avançado do tumor no momento do diagnóstico. Também se constatou que mulheres pardas e negras tendem a iniciar o tratamento oncológico mais tardiamente em comparação com mulheres brancas.

O acesso e a investigação diagnóstica com agilidade e qualidade são um direito de todas as mulheres independente de etnia, raça/cor ou classe social. Inclusive, existem legislações que visam respaldar e assegurar o acesso a saúde, a destacar a Lei nº 11.664 de 2008 que versa sobre o direito de toda mulher, a partir dos 40 anos de idade, à realização de mamografia de rastreamento, indicada para mulheres que não possuem fatores de hereditariedade a partir de 50 anos, podendo ser realizada a cada 02 anos. Assim como a Lei nº 12.732 de 23/11/2012 a qual refere sobre o direito da paciente iniciar o tratamento no SUS num prazo de até 60 dias contados a partir do dia em que foi firmado o diagnóstico de neoplasia maligna. Além disso, as mulheres que sofrerem mutilação total ou parcial de mama, decorrente de utilização de técnica de tratamento de câncer, têm direito a cirurgia plástica reconstrutiva, no SUS conforme Lei nº 9.797, de 6 de maio de 1999.

Deste modo, os serviços públicos de saúde devem estar preparados para priorizar o atendimento das mulheres com nódulos ou outras alterações suspeitas na mama. A agilidade da avaliação favorece a detecção precoce da doença, bem como outras orientações gerais voltadas para os profissionais de saúde no sentido de ofertar cuidados centrados nas necessidades deste público. Contudo, ainda persistem desigualdades no acesso aos serviços de saúde e diagnóstico, sobretudo de mulheres de baixa renda, com menor nível de escolaridade e de etnias não brancas.

Considerando os interesses assistenciais e científicos envolvidos na ampliação dos conhecimentos sobre as interseccionalidades de gênero, raça e etnia no processo de saúde-doença-cuidado, este trabalho se propõe a trazer reflexões sobre a qualidade e agilidade do acesso e diagnóstico de câncer de mama à luz de um relato de experiência de uma usuária assistida em um hospital de referência em oncologia da Grande Vitória.

Trata-se de uma usuária que possuía histórico de câncer na família, 40 anos de idade, negra, diarista, casada, 02 filhos, com ensino fundamental incompleto relata que em 2018 sendo estimulada pela campanha do Outubro Rosa, realizou o autoexame e identificou nódulo na mama, logo em seguida buscou atendimento na Unidade Básica de Saúde de referência para acesso ao exame de mamografia. Já no início de 2019 após realizar o exame, aguardou aproximadamente mais 06 meses para passar por consulta com mastologista, e segundo relato da mesma, o médico indicou somente o monitoramento do nódulo, e solicitou retorno de consulta com novo exame após 06 meses. Neste período a usuária percebeu que o nódulo crescia e apresentava dor local, em meados de 2020 buscou novamente atendimento em UBS, mesmo com muita demora nos agendamentos e a saga de idas e vindas, realizou nova mamografia, e ressalta que durante a consulta, sentiu-se negligenciada pois, o profissional não se sentou para atendê-la, e ao informá-lo os sintomas, o mesmo a contradiz e atribui suas dores ao sobrepeso. A partir disso, buscou a rede privada em busca de atendimento e então, no final de 2021, após 03 anos de peregrinação, a usuária foi encaminhada para um hospital público de referência em oncologia.

Diante do exposto, percebemos que o acesso e qualidade do sistema desta usuária foi permeado por violações de direitos, uma vez que o acesso a investigação diagnostica com agilidade e qualidade é um direito da mulher. A garantia do acesso universal e equitativo à saúde está diretamente associada ao acesso e utilização dos serviços que, muitas vezes, são violados por diferentes eixos estruturantes que funcionam de forma articulada, racismo, sexismo e condições socioeconômicas e culturais. O acesso – utilização dos serviços e insumos de saúde – é condição importante para a manutenção de bom estado de saúde ou para seu restabelecimento, embora não seja o único fator responsável por uma vida saudável e de boa qualidade. E, nesse caso, as mulheres negras experimentam diferentes tipos de discriminação de raça e gênero, que, quando se interseccionam, comprometem a sua inserção na sociedade como um sujeito de direito, principalmente no que tange à saúde, onde as desigualdades impostas pelo racismo e sexismo diferenciam as mulheres no acesso aos serviços de saúde assim como no processo de adoecimento.

De acordo com Crenshaw (2002), a interseccionalidade é uma associação de sistemas múltiplos de subordinação, sendo descrita de várias formas, como discriminação composta, carga múltipla ou dupla ou tripla discriminação, que concentra problemas, buscando capturar as consequências estruturais de dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. As mulheres negras sofrem com o fenômeno da dupla discriminação, ou seja, estão sujeitas às múltiplas formas de discriminação social em consequência da conjugação perversa de racismo e sexismo, resultando em uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos em todas as dimensões da vida.

Em outras palavras, o racismo institucional somado a estereótipos de gênero comprometem o cuidado integral dessas usuárias, fazendo-se necessária a adoção de políticas afirmativas capazes de salvaguardar o direito dessas usuárias. Neste contexto destaca-se o Estatuto da Igualdade Racial que visa garantir à população negra a igualdade de oportunidades e a defesa dos direitos étnicos e individuais, coletivos e difusos. Além disso, busca combater a discriminação racial e quaisquer outras formas de intolerância étnica. Portanto, o Estatuto ressalta o direito do povo negro ao acesso a saúde, mesmo este sendo um direito universal já garantido constitucionalmente, ainda se faz necessário políticas afirmativas para que estes tenham acesso a direitos fundamentais.