Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O uso do círculo de cultura para pesquisa em saúde coletiva: uma experiência de fazer-aprender.
CAMILA MARQUES DA SILVA OLIVEIRA, MARIA ROCINEIDE FERREIRA DA SILVA, GLAUCILANDIA PEREIRA NUNES

Última alteração: 2021-12-28

Resumo


O presente trabalho emergiu da dissertação de mestrado da autora como parte fundamental da metodologia de coleta das falas dos atores de uma pesquisa-ação em saúde.

O objetivo deste recorte de estudo foi, de modo geral, compreender como uma metodologia de ensino-aprendizagem alfabetizadora de Paulo Freire pode potencializar a coleta de dados e promover autonomia dos sujeitos implicados na pesquisa em saúde coletiva.

Chamamos de círculos de cultura uma estratégia de formação alfabetizadora de jovens e adultos que emergiu na década de 1960. O criador da estratégia didática, Paulo Freire, ansiava por uma educação para a decisão, responsabilidade social, participação política e com a prática da liberdade,título este de um de seus livros. Imaginou o autor estruturar uma didática de ensino que pudesse substituir a escola tradicional disciplinarizante e infantilizadora por uma engrenagem de circulação e apropriação do conhecimento pela conquista da linguagem. A conquista da linguagem estava, então, sendo anunciada como um momento de dar-se conta das palavras, dos signos e significados, mas também e, principalmente, daquilo que realmente queriam dizer ou escrever. Para mulheres e homens, as palavras têm vida, porque dizem respeito ao seu trabalho, à sua dor, à sua fome e aos seus modos de viver e entender a vida.

O contexto histórico brasileiro de quando esta estratégia de ensino-aprendizagem foi aplicada era marcado pelo posicionamento antidemocrático e alienante das mais diversas instituições. A situação de pobreza extrema da população dificultava a compreensão da relevância da educação como alavanca para a quebra do ciclo da pobreza. Deixando de lado a postura de espectador, menos através de textos de estilo acadêmico e mais como denúncia do mal-estar produzido pela ética própria do mercado implicada na dominação e automatização dos sujeitos, Freire anunciava a solidariedade enquanto compromisso histórico das pessoas e também como forma de luta para superação da dura realidade imposta. De início, a meta era a alfabetização de jovens e adultos. Acreditava o autor que o saber que havia na prática docente aproveitava o saber de experiência feito do educando, tornando-o implicado na reflexão crítica. Havia a esperança de que estes alfabetizandos se tornassem multiplicadores da prática do círculo de cultura. O educador (ou o coordenador do círculo) não exercia as funções de professor, mas de disparador de diálogos entre os alfabetizandos. No método de ensino, seria possível reconhecer algo da maiêutica socrática, pois, tal como em Sócrates, a conquista do saber se dava pelo exercício tanto livre quanto possível das consciências.

O ponto de partida para o trabalho em círculo de cultura estava em reunir até 25 educandos para estabelecer um grupo de trabalho ou debate, numa linguagem com contexto da prática social livre e crítica, que não podia se limitar às relações internas do grupo, mas devia se apresentar como tomada de consciência que se realiza de sua situação social. Neste método, cabe ao educador apresentar algumas imagens, sem palavras, para que se propicie o debate sobre as noções de cultura e de trabalho. A meta não é atingir a elucidação de conceitos, mas que os participantes se reconheçam no transcurso da discussão.

Destacamos a relevância desta tomada de consciência como mote da pesquisa-ação a que nos propusemos realizar. Resgatando as ideias de Paulo Freire e realizando interface com o campo da saúde, acreditamos que também do profissional de saúde exige-se metodologia e criticidade de sua práxis para a produção do conhecimento da saúde. Exige-se também ética e estética, para a promoção da saúde de qualidade e eficaz. Exige corporificação das palavras pelo exemplo para que o indivíduo e comunidade possam perceber que o trabalho em saúde é eminentemente relacional e que é imprescindível formar vínculos com a equipe de saúde. Exige, ainda, reconhecimento da identidade cultural das pessoas, das famílias e das comunidades para que as atividades de promoção da saúde possam ser criadas a partir das demandas e necessidades de saúde percebidas e dialogadas. Acreditamos, também, ser o círculo de cultura um espaço-tempo de busca da compreensão de situações-limite e de potencialidades das realidades apresentadas e é um jovem e forte aliado na metodologia de pesquisa qualitativa, sobretudo no desenvolvimento desta pesquisa-ação.

Na pesquisa realizada houve, em princípio, uma exposição dialogada acerca dos propósitos do trabalho que vínhamos realizar, a constituição desse grupo e esclarecimentos sobre a forma de agir da pesquisadora nesse momento. O diálogo foi colocado como ponto imprescindível da estratégia do encontro, pois era necessário que cada pessoa se sentisse confortável em falar ou silenciar. Pactuamos, também, o respeito à fala do outro, com a possibilidade de concordar e discordar dentro do seu momento de fala. Informamos sobre a nossa disponibilidade em contribuir com o enfrentamento de problemas que pudessem ser identificados e sobre nossa vontade de provocar transformações na unidade.

Foram realizados quatro encontros, com o grupo de trabalhadores da saúde de uma unidade de atenção primária à saúde. Para levantamento do universo vocalubar, trouxemos tarjetas individuais, onde os participantes utilizaram para anotações acerca da questão disparadora: que palavras lhes vêm à mente quando se fala em produzir cuidado? Em seguida, realizamos a identificação das palavras geradoras que emergiram da observação e leitura destas tarjetas.

Olhando o que fora produzido, os trabalhadores puderam perceber expressões comuns e enxergaram as expressões-temas provocadoras, o que se traduziu no momento da problematização. Aos participantes, foi possível reconhecer situações limitantes da sua produção de cuidado como: a força do modelo biomédico e a medicalização dos corpos agindo em sentido contrário às suas vontades de promover autocuidado na perspectiva de garantir autonomia de seus processos de cuidado. A percepção de situações limitantes reverberadas das próprias falas e escritas contribuíram para que os trabalhadores reconhecessem que essa perda de autonomia também os atingia, no que tange a promover um cuidado integral aos indivíduos, à comunidade.  Apesar da frustração, quando perguntados a respeito de como permanecer produzindo saúde, os trabalhadores elencaram o afeto do trabalho em equipe como elemento de potencialidade. Neste quesito, os atores produziram em conjunto um diagrama em formato de coração, com a palavra “comunidade” ao centro, e em setas apontando na direção central: atenção, responsabilidade, afeto, amor, compromisso social.

Fortes aliados da pesquisa-ação, os círculos de cultura nos permitiram visualizar com mais clareza quais foram realmente as situações limitantes da produção de cuidado e quais potencialidades podem surgir deste dar-se conta. O universo vocabular dos participantes se mostrou coerente com profissionais interessados em realizar serviços que atendessem às necessidades dos pacientes de maneira geral. No momento da problematização, os trabalhadores vivenciaram questionamentos cotidianos e assumiram posição de interesse na melhoria dos serviços de saúde. Entretanto, na investigação de situações limitantes, tenderam a vitimização pelo processo de institucionalização de suas ações produtoras de cuidado. Eles se percebem oprimidos, seres negados de dialogicidade e de autonomia. Encontraram-se, porém, potentes pelo trabalho em equipe, pelo compromisso social de seus trabalhos e pela afetividade do serviço de produzir saúde comunitária.