Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-01-07
Resumo
Apresentação: Este estudo faz parte de uma tese de doutorado sobre a cartografia da profissão Agente Comunitária de Saúde (ACS). Está ancorado nas concepções filosóficas, teóricas e metodológicas de autores que dialogam com a filosofia da diferença, cartografia, micropolítica e trabalho vivo em ato, de maneira que procuramos cartografar as práticas das ACS e as tecnologias de trabalho na saúde, tendo como pressuposto o seu caráter imaterial e a centralidade do trabalho vivo nos atos produtivos associado ao modelo tecnológico, que supõe o uso de tecnologias duras, leve-duras e leves. O ACS é uma profissão recente, criada exclusivamente para o Sistema Único de Saúde (SUS), mas que vem, desde sua criação, passando por modificações no que concerne as suas competências técnicas, políticas e sociais. É consenso na literatura que se trata de profissionais de saúde essenciais para efetivação dos atributos da atenção primária e para o fortalecimento do SUS, pois a lógica de seu trabalho tem como premissa superar o modelo biomédico, promovendo novas formas de cuidado, tendo como objeto de atuação a promoção da saúde. Em sua maioria são mulheres, que atuam como mobilizadoras sociais nos territórios onde vivem e trabalham, consolidando uma compreensão do universo da comunidade e dos cuidados com a saúde. Dessa forma, contribuem para o processo de delimitação do território, uma vez que os territórios são sempre diversos e estão em movimento complexo, em revisão permanente de seus fluxos e contornos. As ACS são devires. Devir é um conceito filosófico próprio do desejo, é um verbo com toda sua consistência, não se reduz nem nos faz pensar em parecer nem em ser(...) devir é fazer rizoma, assim como a profissão ACS. Este estudo tem como objetivo compreender os sentidos e sentimentos produzidos pelas ACS durante a vivência, enquanto sujeitas participantes ativas do trabalho de campo da pesquisa, identificando seus contornos, costuras e linhas inerente ao processo produtivo do devir-ACS. Desenvolvimento: O trabalho se insere no campo da pesquisa-intervenção, que pretende cartografar as singularidades da realidade, da produção no mundo vivo das ACS com seus sentidos, significados, sonhos, desejos e atitudes em constante processo de singularização. A cartografia é um método inovador da pesquisa qualitativa, em que pesquisadora e pesquisadas estão inseridas numa relação implicacional com o objeto de estudo construída “em” e “no” processo. A cartografia propõe uma reversão metodológica, costumeiro dos métodos tradicionais, que traça um caminho bem definido para alcançar objetivos pré fixados (meta-hódos). A reversão afirma um Hódos-meta, em que o desafio é durante o caminho traçar as metas. A cartografia é uma pesquisa sem direção preestabelecida, fixa ou imutável que a oriente, sendo construída por pistas que norteiam o percurso, de modo a estimular a liberdade criadora da pesquisadora ao se deparar no plano da experiência. Os dados, aqui apresentados, são resultados das narrativas construídas coletivamente em uma das quatro oficinas da pesquisa. A oficina é uma técnica amplamente utilizada no método cartográfico, em que pesquisadora e pesquisadas se encontram implicadas com as questões em análise. Na oficina usamos a poesia como linha condutora para a produção das narrativas. Fizemos o varal poético com fragmentos de poesia de rua e montamos uma exposição com as narrativas produzidas individualmente, sendo posteriormente desenvolvida uma bricolagem que culminou com a narrativa coletiva: “ser ACS na contemporaneidade”. No campo da pesquisa cartográfica a narrativa emerge como possibilidade, a partir do encontro com os heterogêneos, de recriar experiências, transmitidas por uma história coletiva de conhecimentos, sentimentos, sentidos e práticas sociais. Participaram da oficina cinco ACS, sendo todas mulheres residentes da zona urbana. O cenário do estudo foi o município de Tauá, localizado no sertão dos Inhamuns, região do semiárido do Ceará. Resultados: A narrativa produzida na oficina é um texto de 12 laudas, que para fins de organização deste manuscrito apresentaremos dois fragmentos, composto pelos núcleos narrativos: (1)“Ser ACS” e (2) O atravessamento da pandemia no trabalho. No núcleo narrativo 1 as ACS trazem à tona as singularidades e multiplicidades do saber-ser-fazer. Para elas: “ACS é o elo de ligação entre a comunidade e a unidade de saúde, mas hoje em dia essa ligação está um pouco estremecida. Hoje a linguagem é outra, o agente de saúde fala uma linguagem e a comunidade outra”. Também percebemos na narrativa um distanciamento entre as ACS e os demais membros da equipe: “Existem controvérsias entre ACS e a UBS de referência em relação aos profissionais. De um lado o ACS sempre fica com suas angústias de não “saciar” (// ser resolutivo) em seu trabalho no dia a dia. Nos dias atuais ser ACS é estar sempre buscando se aperfeiçoar em conhecimentos, mas também ser dinâmico, se renovar a cada dia, está ligado a comunidade. Ter atenção, disponibilidade e amor. É também recorrente o sentimento de desvalorização profissional tanto por parte delas como pelos demais profissionais e da comunidade, como podemos observar na narrativa: precisamos aprender a nos valorizar, senão morremos e somos esquecidos por todos, inclusive pelo Estado, que nos criou. Somos esquecidos até mesmo pelos colegas de profissão. Então, ser ACS é ser espelho. É saber que o elo com a comunidade ainda não perdeu o sentido, mesmo diante de tantas diversidades, de tantas inovações tecnológicas, o trabalho do ACS é necessário. O contexto atual exige novas costuras, novos pontos sem que se perde o fio, [...]. Ser ACS é ter amor ao próximo, é ter um olhar e escuta diferenciado, [...] Com o tempo nosso trabalho faz com a gente fique corajosa, crie argumentos e às vezes a gente tem que estudar pra ter os argumentos, porque não é só chegar e dizer o que o ACS tem que fazer, tem que explicar o porquê tem que fazer, hoje eu pesquiso para ver se o que estão me pedindo é o que realmente o ACS pode fazer[...]. No fragmento 2 as ACS trazem toda insegurança e medo que a pandemia provocou, mas sobretudo como elas tiveram que buscar atualizações com o uso de tecnologias digitais para continuar fazendo seu trabalho. [...]“você ainda pode sonhar”, esta frase tem tudo a ver com a minha vida, porque a minha vida é dividida antes de ter Covid e depois, mas foi um momento importante para eu rever muitas coisas na minha vida. Esse tempo está difícil para todo mundo, mas a gente consegue ver flores nascer no deserto. O trabalho está mais eficiente, mais ágil e a gente está produzindo muito mais, porque antigamente a pessoa morava na minha área, mas eu não via, porque trabalha em outra cidade, agora eu pego o contato e faço até o cadastro via whatsapp. Considerações: Ao olharmos para o trabalho vivo em ato produzido pelo coletivo ACS percebemos que mudanças têm se operacionalizado em constante movimento, sem nenhuma ordenação cartesiana, de maneira que as multiplicidades de saberes e práticas estão em permanente conectividade, formando redes rizomáticas. Em outras palavras, o trabalho das ACS flui com o movimento da vida e vem demostrando ser uma potência no cuidado comunitário.