Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Feira do Soma-sempre: é possível “produzir conhecimento dentro do caos”?
Mayana Dantas, Maria Rocineide Ferreira da Silva, Raimundo Félix de Lima, Vera Lúcia de Azevedo Dantas, Maria Marlene Marques Ávila, Vanderléia Laodete Pulga, André Ribeiro de Castro Júnior, Lúcia Conde de Oliveira

Última alteração: 2022-01-17

Resumo


O Curso Livre de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS) foi uma das estratégias da Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS) concretizada até o momento. Constitui-se em um curso para ACS, ACE e movimentos sociais. Como parte do processo seletivo de seus educadores, realizou-se uma formação de Educação Popular em Saúde (EPS). No Ceará, entre as diversas metodologias vivenciadas durante esta seleção, destacamos a Feira do Soma-sempre, uma proposta pedagógica criada no contexto das ações das Cirandas da Vida, pelo cenopoeta Ray Lima.  Temos o objetivo de descrever e analisar a Feria do Soma-Sempre como exercício de produção de conhecimento em diálogo com a resiliência e a ancestralidade, na formação dos/as educadores/as do EdPopSUS. Utilizamo-nos da observação participante e da realização de entrevistas a 23 educadores/as participantes da seleção para a coleta de dados, os quais foram analisados sob o referencial da análise temática dos dados. Este estudo é fruto da dissertação O “aprendizado sentido no corpo, uma potência de cuidado, escuta e cura” e teve sua aprovação ética no Comitê da respectiva universidade. A Feira do Soma-sempre se fundamenta nos princípios da EPS, referenciando sua aplicação prática no Movimento Escambo Popular Livre de Rua. Há mais de três décadas, o Movimento Escambo mobiliza grupos artísticos de forma autônoma, propondo-se a organizar politicamente os grupos e as comunidades para o fortalecimento da cultura local. A Feira tem sido experienciada em muitos espaços da EPS no país e foi realizada também no contexto da formação(-seleção) dos/as educadores/as do EdPopSUS. Esta proposta se dá com a criação de barracas em grupos a partir de um tema-gerador norteador. Para a criação das barracas, toma-se uma discussão nos grupos como ponto de partida, baseada em pequenos textos (ou outros materiais pedagógicos) sobre o tema. Os integrantes das barracas alternam-se entre quem as visita e quem as apresenta, de maneira que seja possibilitado a todos/as conhecerem os modos de organização e de participação de todos os grupos e/ou comunidades presentes. Para tanto, deverão combinar-se internamente no grupo sobre a sequência de atuação como apresentadores/as e visitantes para que todas as barracas possam ser visitadas por alguém da comunidade e/ou grupo e que todos os integrantes tenham tido a oportunidade de atuar na apresentação de sua barraca. Nesse processo, com base no que escutaram/vivenciaram, os sujeitos trazem à tona questões problematizadoras, tanto sobre o tema abordado, como sobre seus modos de organização e participação. As barracas procuram acolher tais questionamentos, podendo incluí-los ou não como aprendizagens ou possíveis modificações em seus padrões de organização e/ou de relações. Finalmente, cada barraca constrói e socializa uma síntese do que havia pensado inicialmente, bem como as aprendizagens que tiveram por meio da interação umas com as outras. Diz-nos um educador (E22): “tinha conhecimento das outras pessoas, a sua vivência, um rodízio de conhecer. As pessoas se permitiram. Quando eu olhei [os produtos das barracas], cada um melhor que o outro, a dedicação de cada um, a forma como se preparou, organizou o seu espaço, como se dissesse, ‘o que eu tenho de melhor, eu vou me dar agora’”. Quem vai à Feira do Soma-sempre precisa lembrar que, na vida, compreendida como um sistema livre, fluido, em rede-roda aberta, nada se perde e ninguém prospera sozinho/a. Desta maneira, a Feira corporifica-se na prática de nossas experiências e saberes, com vistas à interação e ao compartilhamento com o/a outro/a para a produção de novas experiências e saberes. Para tanto, necessitamos apenas nos mantermos com nossas estruturas mental e física abertas ao desejo de nos transformarmos e aprofundarmos nossa humanidade, expandindo-a. Segue a fala de outro educador (E21): “uma feira livre circulando, oferecendo seu produto e comprando o conhecimento. Há uma troca, as pessoas participam, se envolvem. Dentro da feira, tem a poesia, o cordel...”. A feira configura-se como um ato de vontade e liberdade individuais que se tornam coletivas à medida que as interações entre os sujeitos acontecem. Não há fronteiras na cultura do “Soma-sempre”. Há espaços envolvendo escuta, expressão, cuidado, aprimoramento dos olhares e das práticas humanas em torno da produção do coletivo que se autogere, multiplica-se, expande-se, flui e reconfigura-se de forma permanente, superando o conformado e instituído. E13: “produzir conhecimento dentro do caos em que as pessoas ‘tão dizendo várias coisas, seduzindo; há uma certa competição, noção de mercado onde as pessoas não perdem nada, sempre somam (...)”. Esta maneira de organizar e produzir conhecimento aproxima-se, para nós, do movimento científico da crise do paradigma dominante, que vem causando profunda reflexão epistemológica sobre a produção de conhecimento e provocando uma articulação mais estreita entre as ciências naturais e sociais. A característica caótica da produção de conhecimento na feira mencionada pelo educador remete-nos à teoria da auto-organização em situações de desequilíbrio nos sistemas de alta instabilidade. Assim, flutuações de energia, em momentos nem sempre possíveis de serem previstos, desencadeiam, de forma espontânea, reações que pressionam o sistema para além de seu limite de instabilidade, o que o faz atingir um novo estado de menor grau de irreversibilidade. Tais teorias nos provocam a refletir sobre como temos exercitado nossa capacidade de resiliência diante do caos social, psicológico, político, ambiental e econômico, latentes em nossos territórios? Tal questionamento, mostra-se importante especialmente quando os/as ACS, principais educandos do EdPopSUS, têm sido induzidos a se fixarem dentro dos serviços de saúde, reproduzindo padrões de comunicação e de vínculo abordados em formações convencionais que são permeadas por uma concepção fragmentada de território. E2: “Era nosso escambo cultural. Tinha algo pra repassar, pra vender e que precisava comprar, absorver. tinha que levar algo, mas também precisava deixar (...), nos instigava a trabalhar: partilha, produtos não-perecíveis, não tinham data de validade, eram atrativos, de alta qualidade. Recomendava que levassem pra onde fossem, produtos velhos, novos, fabricados, expostos, antiguíssimos da nossa ancestralidade, mas que o outro ainda não tinha tido o prazer de conhecer (...)”. A Feira do Soma-sempre também é influenciada pelas feiras populares que, de alguma maneira, apresentam-se a nós como caóticas, intensas e diversas em produtos. Nas feiras populares, presentificam-se também nossos saberes ancestrais que, por causa de seu dinamismo e preponderância da oralidade, não foram aprisionados pelo senso mercadológico e frio das prateleiras de supermercado. Contudo, como disse o educador, apesar de antigos, podem ser de difícil acesso. A ancestralidade configura-se no reconhecimento de que a vida, apesar de individual, não é única, constituindo-se numa relação onde, por amor, cuidamos uns dos outros. Os saberes ancestrais são incorporados por meio da corporeidade, da oralidade. Por isso, distanciam-se da lógica capitalista na qual o acesso ao conhecimento define-se pelo poder financeiro. Em nossa experiência enquanto praticantes de capoeira angola, percebemos que a ancestralidade parte, por meio da convivência, de uma relação respeitosa na qual o educando inclui-se de forma ativa. O educar ocorre de forma permanente e recíproca. Mostra-se, assim, com o importante papel de educar os/as educadores/as, o mundo e os outros, na convivência. Imprevisivelmente criativa, regenerável e arredia, configura-se num exercício da maneira de viver dos/as feirantes, norteada pelo princípio criativo do mundo. A Feira apresenta-se, então, como um sistema fortemente inspirado na ancestralidade que pode nos ajudar no exercício da resiliência em nossos territórios.