Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-01-17
Resumo
O Curso Livre de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS) foi uma das estratégias da Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS) concretizada até o momento. Constitui-se em um curso para ACS, ACE e movimentos sociais. Como parte do processo seletivo de seus educadores, realizou-se uma formação de Educação Popular em Saúde (EPS). No Ceará, entre as diversas metodologias vivenciadas durante esta seleção, destacamos a Feira do Soma-sempre, uma proposta pedagógica criada no contexto das ações das Cirandas da Vida, pelo cenopoeta Ray Lima. Temos o objetivo de descrever e analisar a Feria do Soma-Sempre como exercício de produção de conhecimento em diálogo com a resiliência e a ancestralidade, na formação dos/as educadores/as do EdPopSUS. Utilizamo-nos da observação participante e da realização de entrevistas a 23 educadores/as participantes da seleção para a coleta de dados, os quais foram analisados sob o referencial da análise temática dos dados. Este estudo é fruto da dissertação O “aprendizado sentido no corpo, uma potência de cuidado, escuta e cura” e teve sua aprovação ética no Comitê da respectiva universidade. A Feira do Soma-sempre se fundamenta nos princípios da EPS, referenciando sua aplicação prática no Movimento Escambo Popular Livre de Rua. Há mais de três décadas, o Movimento Escambo mobiliza grupos artísticos de forma autônoma, propondo-se a organizar politicamente os grupos e as comunidades para o fortalecimento da cultura local. A Feira tem sido experienciada em muitos espaços da EPS no país e foi realizada também no contexto da formação(-seleção) dos/as educadores/as do EdPopSUS. Esta proposta se dá com a criação de barracas em grupos a partir de um tema-gerador norteador. Para a criação das barracas, toma-se uma discussão nos grupos como ponto de partida, baseada em pequenos textos (ou outros materiais pedagógicos) sobre o tema. Os integrantes das barracas alternam-se entre quem as visita e quem as apresenta, de maneira que seja possibilitado a todos/as conhecerem os modos de organização e de participação de todos os grupos e/ou comunidades presentes. Para tanto, deverão combinar-se internamente no grupo sobre a sequência de atuação como apresentadores/as e visitantes para que todas as barracas possam ser visitadas por alguém da comunidade e/ou grupo e que todos os integrantes tenham tido a oportunidade de atuar na apresentação de sua barraca. Nesse processo, com base no que escutaram/vivenciaram, os sujeitos trazem à tona questões problematizadoras, tanto sobre o tema abordado, como sobre seus modos de organização e participação. As barracas procuram acolher tais questionamentos, podendo incluí-los ou não como aprendizagens ou possíveis modificações em seus padrões de organização e/ou de relações. Finalmente, cada barraca constrói e socializa uma síntese do que havia pensado inicialmente, bem como as aprendizagens que tiveram por meio da interação umas com as outras. Diz-nos um educador (E22): “tinha conhecimento das outras pessoas, a sua vivência, um rodízio de conhecer. As pessoas se permitiram. Quando eu olhei [os produtos das barracas], cada um melhor que o outro, a dedicação de cada um, a forma como se preparou, organizou o seu espaço, como se dissesse, ‘o que eu tenho de melhor, eu vou me dar agora’”. Quem vai à Feira do Soma-sempre precisa lembrar que, na vida, compreendida como um sistema livre, fluido, em rede-roda aberta, nada se perde e ninguém prospera sozinho/a. Desta maneira, a Feira corporifica-se na prática de nossas experiências e saberes, com vistas à interação e ao compartilhamento com o/a outro/a para a produção de novas experiências e saberes. Para tanto, necessitamos apenas nos mantermos com nossas estruturas mental e física abertas ao desejo de nos transformarmos e aprofundarmos nossa humanidade, expandindo-a. Segue a fala de outro educador (E21): “uma feira livre circulando, oferecendo seu produto e comprando o conhecimento. Há uma troca, as pessoas participam, se envolvem. Dentro da feira, tem a poesia, o cordel...”. A feira configura-se como um ato de vontade e liberdade individuais que se tornam coletivas à medida que as interações entre os sujeitos acontecem. Não há fronteiras na cultura do “Soma-sempre”. Há espaços envolvendo escuta, expressão, cuidado, aprimoramento dos olhares e das práticas humanas em torno da produção do coletivo que se autogere, multiplica-se, expande-se, flui e reconfigura-se de forma permanente, superando o conformado e instituído. E13: “produzir conhecimento dentro do caos em que as pessoas ‘tão dizendo várias coisas, seduzindo; há uma certa competição, noção de mercado onde as pessoas não perdem nada, sempre somam (...)”. Esta maneira de organizar e produzir conhecimento aproxima-se, para nós, do movimento científico da crise do paradigma dominante, que vem causando profunda reflexão epistemológica sobre a produção de conhecimento e provocando uma articulação mais estreita entre as ciências naturais e sociais. A característica caótica da produção de conhecimento na feira mencionada pelo educador remete-nos à teoria da auto-organização em situações de desequilíbrio nos sistemas de alta instabilidade. Assim, flutuações de energia, em momentos nem sempre possíveis de serem previstos, desencadeiam, de forma espontânea, reações que pressionam o sistema para além de seu limite de instabilidade, o que o faz atingir um novo estado de menor grau de irreversibilidade. Tais teorias nos provocam a refletir sobre como temos exercitado nossa capacidade de resiliência diante do caos social, psicológico, político, ambiental e econômico, latentes em nossos territórios? Tal questionamento, mostra-se importante especialmente quando os/as ACS, principais educandos do EdPopSUS, têm sido induzidos a se fixarem dentro dos serviços de saúde, reproduzindo padrões de comunicação e de vínculo abordados em formações convencionais que são permeadas por uma concepção fragmentada de território. E2: “Era nosso escambo cultural. Tinha algo pra repassar, pra vender e que precisava comprar, absorver. tinha que levar algo, mas também precisava deixar (...), nos instigava a trabalhar: partilha, produtos não-perecíveis, não tinham data de validade, eram atrativos, de alta qualidade. Recomendava que levassem pra onde fossem, produtos velhos, novos, fabricados, expostos, antiguíssimos da nossa ancestralidade, mas que o outro ainda não tinha tido o prazer de conhecer (...)”. A Feira do Soma-sempre também é influenciada pelas feiras populares que, de alguma maneira, apresentam-se a nós como caóticas, intensas e diversas em produtos. Nas feiras populares, presentificam-se também nossos saberes ancestrais que, por causa de seu dinamismo e preponderância da oralidade, não foram aprisionados pelo senso mercadológico e frio das prateleiras de supermercado. Contudo, como disse o educador, apesar de antigos, podem ser de difícil acesso. A ancestralidade configura-se no reconhecimento de que a vida, apesar de individual, não é única, constituindo-se numa relação onde, por amor, cuidamos uns dos outros. Os saberes ancestrais são incorporados por meio da corporeidade, da oralidade. Por isso, distanciam-se da lógica capitalista na qual o acesso ao conhecimento define-se pelo poder financeiro. Em nossa experiência enquanto praticantes de capoeira angola, percebemos que a ancestralidade parte, por meio da convivência, de uma relação respeitosa na qual o educando inclui-se de forma ativa. O educar ocorre de forma permanente e recíproca. Mostra-se, assim, com o importante papel de educar os/as educadores/as, o mundo e os outros, na convivência. Imprevisivelmente criativa, regenerável e arredia, configura-se num exercício da maneira de viver dos/as feirantes, norteada pelo princípio criativo do mundo. A Feira apresenta-se, então, como um sistema fortemente inspirado na ancestralidade que pode nos ajudar no exercício da resiliência em nossos territórios.