Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Espaço de cuidado coletivo: prevenção e promoção em saúde mental em uma população ribeirinha de Belém/PA
Márcio Mariath Belloc, Luana Borges Teixeira

Última alteração: 2022-01-18

Resumo


Trata-se de uma ação de prevenção e promoção em saúde mental com uma comunidade ribeirinha de Belém/PA. Projeto desenvolvido e construído coletiva e comunitariamente com residentes do Igarapé Periquitaquara, Ilha do Combu, no campo da saúde mental coletiva, de produção de vida e cidadania, que utiliza tecnologias leves e, em menos de um ano, já produz resultados importantes na avaliação das participantes: fortalecimento de uma rede de cuidado e construção de um espaço seguro para o compartilhamento de vivências.

A cobertura da atenção básica do município de Belém/PA é apenas 39,97%. Além da falta de acesso pela baixa cobertura, as características geográficas também oferecem um desafio a mais para as equipes. A Ilha do Combu, atendida por uma UBS, intercortada por canais e igarapés, possui comunidades singulares, com suas culturas e costumes, cuja principal atividade econômica fora há pouco tempo o extrativismo. Atualmente, cada vez mais centrada no turismo: frequentada pela população urbana belenense e visitantes para lazer e turismo gastronômico. Tais mudanças envolvem impactos nas necessidades de saúde dessas populações. Além dos processos de saúde-adoecimento-atenção já vinculados à vida ribeirinha, somam-se questões relacionadas à saúde mental da vida urbana. Em um contexto cultural tradicional possivelmente tivessem maior contorno e continência comunitária. E como se não bastasse, soma-se à equação os desafios de produzir integralidade na pandemia.

Não obstante, a saúde mental tem historicamente tido maior dificuldade de implementação na rede de atenção básica do município, que geralmente se restringe à repetição da prescrição da média e alta complexidade. Em algumas unidades são desenvolvidos atendimentos individuais e grupais em saúde mental, mas o trabalho, de maneira geral, pouco é articulado em rede, seja na saúde ou na intersetorialidade, ou nos territórios existenciais dos usuários. O que deveria ser a porta de entrada mais se assemelha a uma via estreita, pela qual poucas pessoas veem como passar ou o que a partir dela podem acessar.

Rubén Ferro demonstra que quase a totalidade do financiamento da saúde mental mundial é colocado na média e na alta complexidade, apesar de 80% dos problemas de saúde mental serem tratáveis no âmbito da atenção primária e comunitária. Isso significa que a maioria das pessoas, para ter uma resposta de cuidado nesse campo, precisa vincular-se a um serviço especializado, o que as expõe a riscos desnecessários de iatrogenia inerentes, principalmente por práticas vinculadas ao modelo biomédico hegemônico. Em saúde coletiva sabemos do ganho em qualidade de vida se as ações são desenvolvidas no âmbito comunitário e da atenção primária, podendo auxiliar positivamente também em situações crônicas não diretamente vinculadas à saúde mental, mas que têm o componente emocional relacionado aos limiares de agudização. Trabalhar a saúde mental no âmbito comunitário e da atenção primária promove qualidade de vida e pode aliviar a sobrecarga sobre o sistema, atuando também na diminuição das barreiras de acesso e iniquidades.

Atualmente, às questões específicas do território do Combu, somamos as questões de saúde mental vinculadas ao enfrentamento da pandemia da Covid-19. Os estudos da OMS envolvendo desastres humanitários, epidemias e a atual pandemia, apontam também para a necessidade de ações de prevenção e promoção no âmbito da saúde mental, utilizando tecnologias leves, preconizando ações que auxiliem as populações na estabilização psicossocial e elaboração das perdas inerentes ao processo pandêmico, principalmente na ação comunitária e atenção primária, contando com média e alta complexidade para casos cujo padecimento ultrapassa suas possibilidades de continência.

O objetivo desse espaço de cuidado coletivo, criado com a população a que se dirige, é desenvolver um trabalho de promoção e prevenção no âmbito da saúde mental a partir de encontros grupais semanais. O projeto nasceu do contato com lideranças desse território composto por cerca de 50 famílias, que observavam o surgimento de problemas emocionais e mal-estares, com presença importante de afetos tristes e sentimentos de desesperança. Observa-se também a dificuldade de endereçamento do cuidado desses mal-estares. Com relação à UBS, apontam a dificuldade de acesso geográfico e a inexistência até então de um trabalho de prevenção nesse campo. Chegar à Unidade envolve pagar pelo transporte, economicamente inviável para muitas famílias, ou contar com a ajuda de quem tem um barco, ou ir remando.

A metodologia inicial de trabalho foi a roda de conversa. Afonso e Abade apontam que as Rodas de Conversas são utilizadas como metodologias de abordagem de temas de interesse comuns a um grupo de forma participativa, isto é, constituem-se como um espaço no qual se possa refletir sobre situações cotidianas vivenciadas. Neste sentido, Ferro salienta a importância crucial de desenvolvimento das ações de prevenção e promoção junto com as pessoas afetadas, de forma participativa em seu território e ao encontro de suas necessidades, potencialidades e possibilidades.

Assim, trata-se de uma estrutura de grupo como uma tecnologia leve de cuidado que se estabelecerá num primeiro momento como acesso às formas de mal-estares e a posterior criação coletiva de propostas de ação futuras. Também utilizamos como ponto de partida os grupos de ajuda e suporte mútuo em saúde mental. No nosso caso, a adaptação e o próprio processo grupal levou ao que denominamos espaço de cuidado coletivo.

A partir de encontros semanais, a constituição do grupo, o intercâmbio de experiências, a elaboração coletiva das experiências de padecimento é já um primeiro e crucial momento de cuidado. Sendo o processo grupal o guia para as ações a serem criadas e desenvolvidas pelo grupo: projetos culturais, artísticos, comunicacionais etc.

Ações sempre participativas e comunitárias, sendo a continência grupal a principal tecnologia leve de promoção e prevenção de saúde mental. Não obstante, casos que ultrapassaram essas possibilidades de continência foram devidamente encaminhados para a média e/ou alta complexidade.

Cada encontro semanal tem um tema definido com antecedência pelo próprio grupo e é garantido espaço de fala para todos os integrantes. No contrato inicial, e a cada pessoa nova que chega, retomamos essas regras de funcionamento, que além das acima descritas, estão o contrato de sigilo e o respeito à pluralidade do que é conversado em cada encontro. Os temas são diversos: Covid-19, companheirismo, medo, cuidado, lambanças, respeito, liberdade, entre outros.

Falas emocionadas, lembranças boas ou mesmo terríveis situações de violência e opressão, momentos hilários, histórias de vidas singulares são colocadas na mesa da partilha, acompanhadas de afeto, empatia, risos e lágrimas. Além de café, chocolate autóctone, sucos de frutas amazônicas, quitutes e comidas locais. Quem mora nessas latitudes sabe o valor de uma tarde de conversa com café e pupunha na beira. É justamente de gestos simples, da micropolítica do trabalho vivo em ato, que esse espaço de cuidado coletivo é composto. Compartilhando saberes e sabores amazônicos, cria-se um espaço comum onde a chave é a singularidade. Na avaliação dos participantes, um espaço que se tornou imprescindível, que recompôs uma vivência comunitária que parecia perdida e que tem ajudado singularmente a cada participante – inclusive aos facilitadores do grupo, autores dessas linhas – na produção de vida e cidadania necessárias para enfrentar nosso cotidiano, principalmente em tempos de pandemia e impacto de um modelo ultraneoliberal sobre as vidas ribeirinhas. Com resistência e reinvenção da vida comunitária, nosso espaço de cuidado coletivo tem ajudado amazonidamente a prevenir agravos e promover saúde mental coletiva.