Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Freire susiano, SUS freireano
Márcio Mariath Belloc, Károl Veiga Cabral, Károl Veiga Cabral, Károl Veiga Cabral, Leandro Passarinho Reis Júnior, Leandro Passarinho Reis Júnior, Leandro Passarinho Reis Júnior

Última alteração: 2022-01-17

Resumo


No ano do centenário de Paulo Freire completamos 33 anos de vigência do Sistema Único de Saúde (SUS) em nosso país, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Este trabalho tem a intenção de colocar em destaque o que Paulo Freire e o SUS tem em comum: o pensamento e a ação! São pensamentos e ações que convergem no ideário e na construção de um outro mundo possível, com inclusão para todos. Um mundo no qual o esperançar um futuro seja gesto cotidiano para a maioria da população brasileira e não somente para uns poucos. Todos conhecem Paulo Freire como alguém que contribuiu para revolucionar a educação, sendo considerado patrono da educação brasileira e reconhecido internacionalmente pela reflexão aguçada, certeira e aplicada através de seu método de ensino/aprendizagem que rompe com a lógica de educação bancária e com a falta de assimetria entre quem ensina e quem apreende, construindo uma proposta dialógica, participativa, mestiça e em constante movimento espiral de produção de vida.

As aproximações que serão apresentadas estão pautadas no eixo da educação permanente em saúde como ferramenta de compartilhamento e produção em saúde, resgatando também os princípios e diretrizes do SUS, como a universalidade, a equidade e a integralidade do cuidado em saúde, respeitando a autonomia dos usuários, seus costumes, tradições e conhecimentos, concebendo um fazer em saúde que harmonize conhecimentos técnicos oriundos das diferentes formações em saúde com os saberes tradicionais e populares oriundos das comunidades atendidas. Esta equação já demonstra o quanto o pensamento de Paulo Freire é susiano e como se faz presente nas atividades de educação em saúde que desenvolvemos dentro de muitas das unidades de saúde do Brasil, quando realizamos uma roda de conversa, quando sentamos na praça da cidade para desenvolver uma atividade em saúde, quando investimos na intersetorialidade e nas ações de prevenção e promoção e vamos a escola com o Programa de Saúde na Escola (PSE), quando deflagramos processos de educação permanente com gestores e trabalhadores nos municípios, ou mesmo em ações desenvolvidas pelo controle social nos conselhos de saúde etc.

Por certo que não são todos os atores do cuidado que partilham destas ideias. Infelizmente em muitos municípios e serviços de saúde ainda se reproduz um pensamento hegemonicamente biomédico, empobrecendo as relações necessariamente verticalizadas entre equipe e usuário/comunidade, o que empurra a produção de saúde ao viés curativo apenas, deixando de investir em promoção e prevenção em saúde e quanto menos em investir em educação em saúde, em que pese toda a literatura que aponta o fracasso de uma saúde dita bancária! Ainda carecemos de ampliar o entendimento de saúde presente na maioria dos espaços sociais e reproduzido na formação das diferentes profissões de saúde. Romper com a lógica dominante exige muito trabalho e pequenas revoluções que oportunizem macro e  micro transformações. Revoluções que tenham a capacidade de desacomodar velhas práticas e saberes, indagar e ousar esperançar o novo como bem nos ensina Freire.

O Brasil, através da Constituição de 1988, que tomamos como marco neste escrito, vive a efervescência do cenário de reabertura democrática após longos anos de ditadura, que permite a repactuação nacional de um projeto para o país. Neste projeto, encharcado das ideias e ideais de Freire desenha-se a constituição cidadã, proclama-se na 8 Conferência de Saúde através da voz do sanitarista Arouca que saúde é democracia. Micro e macropolíticas são engendradas e vários movimentos pipocam no território nacional. Ingressamos nos anos 90 municipalizando e reformulando a saúde na perspectiva de torná-la territorializada, o que novamente nos aproxima das ideias freirianas, pois o mesmo concebia a educação como um processo a ser moldado em parceria entre os atores, neste caso: professores, alunos e comunidade escolar, e, portanto, territorializado. Iniciamos os anos dois mil com um crescimento acelerado do país como nação, buscando superar desigualdades e fraturas históricas de acesso a saúde e educação, por exemplo.

Gradativamente o pensamento e a ação em saúde vai ganhar contornos pretendidos pelo ideário dos artigos presentes na constituição de 1988, com muita luta, com disputa no campo da saúde por orçamento, para dar conta das especificidades e necessidades de cada população atendida. Em 2003 saímos do mapa da fome, e crescemos tirando milhares de pessoas da linha da pobreza, diminuindo vulnerabilidades. Vários programas sociais, entre eles o Bolsa Família apostam em um novo modelo de investimento social para a família brasileira, reconhecendo o lugar e a importância da mulher na constituição, cuidado e manutenção da família. Em 2004 é criada a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), que em 2007 via a portaria GM/MS 1996/07 vai implementar as diretrizes da política. Em 2010 concebe-se um projeto de saúde em rede e em linha de cuidado pautados nas necessidades das populações e não na oferta do sistema. Ampliamos nossa capacidade de escutar as populações e de compreender os processos de saúde/doença/atenção (s/d/a) através dos itinerários terapêuticos traçados pelos próprios usuários (Menendez, ANO) entre tatos outros avanços e desafios superados (e outros não) para produzir saúde em um território continental com tantas especificidades.

Em 2016 iniciamos um movimento de retrocesso, com a quebra do pacto nacional de sociedade, esgaçamento do tecido social que empurra para uma espiral de ódio, fake news, pós verdade, descredibilidade da população das instituições e das estruturas sociais, negação da ciência, acrescida da pandemia e de afastamento de parte da sociedade do projeto susiano e freiriano para o país. Um verdadeiro pandemônio toma conta do país e assistimos a milhares de mortes evitáveis por Covid-19 e o agravamento das desigualdades sociais que vieram nesta esteira de pandemia e pandemônio. O projeto social freiresusiano é mortalmente atacado.

Mas com Freire nenhum final é melancólico. Se tem SUS forte encaramos os desafios de produzir saúde, e a própria travessia da pandemia nos demonstra isso. As vacinas chegam derrubando o número de internações e mortes em todo o território nacional. Respiramos mais aliviados. É preciso esperançar, colocando em movimento pensamento e ação como nos ensina Freire.

Chegamos a 2021 esperançando um outro futuro, reconstruindo a utopia brasileira pela democracia participativa com o processo das conferências em saúde mental, justamente uma das mais atingidas nesse esfacelamento do tecido social vivido nos últimos anos, em curso em todo país. As primeiras conferências de saúde iniciadas ainda no final de 2020 são um acalento que nos anima a seguir apostando na defesa da vida. Reconhecendo nossa caminhada como jovem nação, assim como nossa jovem democracia, gestada e despedaçada, mas ainda viva e disposta a lutar. Aprendemos do nosso passado e gestamos novos futuros quando nos damos conta dos erros cometidos e dos desvios tomados do projeto de nação igualitária que concebemos em 1988. Não existe atalho para configuração de uma nação forte e plural, com espaço para todes. É preciso lutar e perseverar a cada dia, enfrentando as opressões e construindo emancipações. Recuperar a aposta em uma nação melhor e igualitária em acessos e direitos através do trabalho vivo em ato. Vida e cidadania como sinônimos desse esperançar um mundo melhor (Freire, 1992)