Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Deriva, derivante: caminhada em sentido ao sentir!
Lara Vitória Lara da Silva D'Almeida, César Augusto Paro, Jonathan Fontella, Nilcéia Nascimento de Figueiredo, Luan Limoeiro Silva Hermogenes do Amaral

Última alteração: 2022-01-31

Resumo


APRESENTAÇÃO:

Este trabalho tem como objetivo compartilhar uma experiência de “Caminhada à Deriva” realizada com graduandos da área da saúde que participam das atividades de ensino, pesquisa e extensão do Laboratório de Estudos em Atenção Primária (LEAP), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Os desafios das relações entre formação de trabalhadores de saúde, saúde pública, sujeito e sociedade expressam uma crise do paradigma da saúde onde a falência de um modelo educacional hospitalocêntrico, focado nas condições agudas, no biológico, secundarizando a subjetividade, vem se colocando cada vez como uma agenda central de discussões. As práticas de saúde iniciam novas demandas que, na produção do conhecimento, têm se identificado com construtos como a interdisciplinaridade, a interação dialógica e o cuidado em saúde. A Atenção Primária à Saúde (APS) vem protagonizando algumas destas iniciativas de demandas, procurando dialogar entre as necessidades de saúde dos sujeitos, a gestão dos serviços, o processo de trabalho e a formação de novos profissionais de saúde.

Neste sentido, o LEAP vem desenvolvendo diversas atividades pautadas no princípio da dialogicidade e nos pressupostos da educação popular em saúde com o desafio de formar profissionais de e para a saúde. Dentre as suas frentes, estão: a palhaçaria, o teatro e estética do oprimido, os grupos balint, as racionalidades médicas, as narrativas em saúde e a corporeidade em saúde. Os diversos professores que conduzem as ações possuem formações diversas (doulagem, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina de família e comunidade, saúde coletiva), agregando desde professores permanentes da própria UFRJ até profissionais de saúde convidados.

Na perspectiva da corporiedade em saúde, um de nossos desafios tem sido a desmecanização de nossos corpos e explorar as múltiplas possibilidades de habitar o corpo e o mundo, contemplando o brincar, o produzir arte e o descobrir do corpo.


DESENVOLVIMENTO:

A proposta da “Caminhada à Deriva” foi idealizada por um dos professores do LEAP que convidou uma das graduandas para planejá-la e executá-la – a integração dos discentes junto com os docentes para o desenvolvimento de alguma das atividades é uma das marcas deste laboratório. Inspirado em experiências pregressas de caminhadas filosóficas e de performances urbanas que privilegiavam o “andar” pela cidade, idealizamos nesta atividade uma deriva em direção ao sentir. O objetivo desta atividade era que os estudantes andassem sem objetivo, que percorressem ruas, avenidas, vielas, becos, praças, etc sem necessariamente ter um ponto de chegada.

Era um sábado de manhã quando nos reunimos online, diante a nova realidade imposta pela pandemia. O que iria vir a partir dali, era uma surpresa para os estudantes, assim como para todos. O que a vida é, se não uma surpresa? Permitir a vivência do imprevisível era o nosso desejo.

Em um mundo onde cada trabalho deve ter objetivo, cada andar deve ter uma direção previamente programada, cada ação uma finalidade a ser alcançada, andar à deriva é uma libertação ousada. No seu livro “A vida não é útil”, Ailton Krenak nos provoca de que “a vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária.”

Éramos sete. Iniciamos o encontro com um aquecimento corporal. Uma música tocava e fomos convidados a movimentar o corpo livremente. Após esse momento inicial, apresentamos a proposta. Nela, apontamos os três elementos que considerávamos necessários para derivar: primeiro, um desejo, o de sair do lugar; segundo, uma ignorância, a de não saber para onde ir; e terceiro, uma boa companhia, as inspirações que levamos com a gente.

Sugerimos três companhias. A primeira era uma carta de Manoel de Barros para seu amigo Castello, em que o autor inicia comentando sobre os desvios de uma caminhada: “(...) No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver. (...)”. A outra era a música de Siba “Toda Vez que Dou um Passo”, em que o autor brinca com a relação do andar com o mundo: “(...) Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar / Ouço o mundo me dizendo corra pra me acompanhar (...)”. Por fim, a terceira companhia foi o Poema “Canção do Óbvio” de Paulo Freire, em que ele trata das esperas do esperançar: “(...) Desconfiarei daqueles que venham me dizer /  à sombra daquela árvore, prevenidos / que é perigoso esperar da forma que espero / que é perigoso caminhar / que é perigoso falar… (...)”. Apesar destas sugestões, qualquer um ali poderia convidar outras referências para poderem fazer a sua caminhada.

Após essa apresentação, combinamos um horário para retornarmos da deriva e pedimos que cada um trouxesse algo para partilhar com o grupo: uma pergunta, uma inquietação, um devaneio, uma foto, um objeto, um poema que lembrou, uma pedra, uma flor, ou o que mais desejar.


IMPACTOS/REVERBERAÇÕES

No retorno da deriva, éramos seis. Uma pessoa se encontrou na sua deriva, ao se perder nos horários. Todos nós colocamos os nossos corpos em direção ao imprevisível. Os relatos se direcionaram em torno do que cada um encontrou ao se perder em novos e velhos caminhos. A beleza do fluir permitiu o descobrir. O descobrir de novos rumos, ou então de se atentar a rumos antigos.

Uma derivante andou de olhos vendados pelo quintal de casa e compartilhou uma poesia sobre essa experiência. Outra andou por uma praça e fitou uma árvore secular, para a qual ela pouco havia dado importância em outros momentos. Outro foi guiado por perguntas que estavam pichadas nos muros do bairro e trouxe as perguntas que estas perguntas lhe fizeram questionar. Outro andou pelos becos da sua comunidade até a entrada do “asfalto”, sendo que, desta vez, preferiu utilizar um caminho mais longo, pelo qual ele pouco passava e se deixou inundar pelas sonoridades que compõem o espaço-favela. Outro enquanto andava por trechos que são considerados “perigosos” dentro do bairro, se questionava sobre as vulnerabilidades produzidas pelo nosso sistema societário. Por fim, outra deu uma volta pelo seu condomínio e se perdeu na prosa com o jardineiro.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminhar e o compartilhar esta caminhada a posteriori promoveu a reflexão sobre o maniqueísmo com que nossos corpos têm ocupado as vias e como o “estar de passagem” de um lugar para o outro, sempre na urgência dos tempos e dos atrasos, tão presente na nossa sociedade contemporânea, nos faz pouco se deixar ser afetado e explorar os sinais que vem da rua.

Todas as pessoas que experienciaram esta vivência avaliaram como extremamente rica e fecunda para pensar na sua relação consigo mesmo, com o mundo e com o espaço urbano. Das caminhadas, derivaram escrevivências que buscaremos compartilhar com o público presente no congresso.