Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
Bem-Viver: Saúde Mental Indígena: Uma experiência intercultural em tempos de ensino remoto
Michele Rocha El Kadri, Bernardo Dolabella Melo, Michele Souza e Souza, Débora Noal, Fernanda Serpeloni, Alessandra Santos Pereira

Última alteração: 2022-01-20

Resumo


O enfrentamento à Covid-19 suscitou a necessidade da formação em Saúde Mental para profissionais da saúde, educação, proteção social e lideranças comunitárias que atuam junto aos povos indígenas. Em seus cotidianos, essas comunidades já convivem com questões que impactam a saúde mental e a espiritual, mas o sofrimento psíquico foi intensificado no contexto pandêmico. O trabalho descreve a experiência no desenvolvimento do curso ‘Bem viver: Saúde Mental Indígena’, voltado para mitigar o impacto psicossocial da Covid-19 nas populações indígenas da Amazônia brasileira, em um contexto extremo quanto necessidade de resposta rápida frente a emergência sanitária, importância de um processo de produção intercultural e ensino remoto em cenário com limitada conectividade de comunicação.

O documento orientador para resposta à política de Covid-19 das Nações Unidas considera a saúde mental como parte da resposta emergencial da saúde pública no manejo da pandemia, no entanto, tem sido um desafio global incorporar estratégias de apoio psicossocial nos planos de contingência na maioria dos países. Em um país com a dimensão territorial e cultural como o Brasil é difícil pensar que esse desafio poderia ser superado sem participação de outros atores da sociedade e de outras organizações governamentais e não governamentais. Diante desse cenário, em outubro de 2020 a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) e a Coordenação das Organizações Indígenas na Amazônia Brasileira (Coiab), promoveu um curso em saúde mental para profissionais da saúde, educação, proteção social e lideranças comunitárias que atuam no enfrentamento à Covid-19 junto a populações indígenas na Amazônia brasileira.

Apesar de não haver uma identidade ‘indígena’ única, pois há povos com diferenças culturais muito bem delineadas, as diversas etnias apresentam uma cosmovisão comum que ultrapassa dualismos mente-corpo, indivíduo-coletivo, humano-ambiente. Como resultado direto do permanente diálogo intercultural na concepção do curso, desde o princípio optamos em adotar o conceito de ‘bem-viver’ por entender que representa um modo alternativo que permite repensar práticas e ampliar o discurso da lógica biomédica dominante que orienta os serviços de saúde e assistência social vigentes. Bem-viver não se restringe à ‘saúde da mente’ numa subjetividade particular, mas também ao bem-estar individual, comunitário, familiar e espiritual (Brasil, 2019).

Desenhos pedagógico do curso: O curso foi dividido em seis módulos disponibilizados semanalmente na plataforma digital (Quadro 1). No módulo introdutório, foram expostos os elementos teóricos norteadores para a compreensão de todo o curso e a atenção psicossocial junto às comunidades. No módulo de autoatenção e estratégias comunitárias, buscou-se evidenciar as alternativas pelas quais as comunidades lidam coletivamente com adoecimento. No módulo de crianças, jovens e anciãos, foram abordados os ciclos de vida e a concepção de pessoa apoiada nas relações de parentesco, vida comunitária, tradições e rituais de passagem. No módulo violências, foram discutidos os fenômenos de etnocídio e epistemicídio cometidos historicamente nos territórios. O módulo de álcool e outras drogas teve como tema o consumo de bebidas alcoólicas e de outras drogas entre o uso tradicional e o consumo abusivo, sendo destacado o diálogo como elemento norteador das estratégias de saúde para os profissionais que lá atuam. No último módulo, suicídio, o sofrimento das comunidades com a diminuição dos territórios, choque cultural e ameaça constante do mundo ocidental sobre as comunidades indígenas foi retratado, norteando a discussão a partir das questões postas pelos diferentes grupos étnicos. O corpo pedagógico foi composto por professores com diferentes formações (psicologia, antropologia, linguística, ciências sociais, medicina, pedagogia e filosofia), não indígenas e indígenas das etnias Mura, Tuxá, Xukuru, Tikuna, Macuxi, Tukano, Tembé, Nambikwara, Munduruku, que assumiram as funções de professores conteudistas, revisores interculturais e tutores pedagógicos. A produção do conteúdo guiado pelo saber tradicional dos consultores indígenas foi um exercício de decolonização do pensamento e permitiu uma aproximação afetuosa e virtuosa da academia com a realidade e cultura indígena.

Desenho operacional: Considerando que grande parte do público-alvo era formada por residentes em lugares com acesso precário à internet, todas as atividades foram disponibilizadas de modo assíncrono conforme a possibilidade de acesso tanto à plataforma do Campus Virtual da Fiocruz quanto ao grupo de WhatsApp. Por meio de grupos de Whatsapp, cada tutor ofereceu suporte técnico e compartilhou semanalmente o material devidamente compactado (cartilha e videoaula), permitindo que participantes acessassem o material quando conseguissem sinal de rede móvel. O curso ficou disponível na plataforma por nove semanas (entre 18 de janeiro e 20 de março), sendo liberado semanalmente acesso a 1 módulo por vez. Cada videoaula tinha entre 20 e 30 minutos e as cartilhas entre 20 e 30 páginas. Ao final do curso, produziu-se também podcast com o conteúdo das cartilhas de modo a compartilhar o material com mais comunidades.

Resultados: Do total de 2.540 inscritos, 37,3% receberam certificação após terem concluído todo o curso e respondido ao questionário final de avaliação do curso. Aqueles trabalhadores dos DSEI´s das oito áreas prioritárias do projeto que tiveram esse acompanhamento dos tutores, apresentaram maior percentual de certificação dentre todos os participantes, alcançando 53% de alunos concluintes. Do total de participantes que respondeu à enquete de encerramento, 97% avaliaram positivamente o curso, destacando a qualidade do conteúdo e da produção material áudio-visual.

Considerações finais: Do ponto de vista de produção do conhecimento, o curso foi um espaço de troca de saber interprofissional orientado pelo olhar ampliado sobre práticas de cuidado utilizadas pelas comunidades. Do ponto de vista operacional, o diferencial dessa iniciativa foi o a criação de alternativas para acesso remoto apesar da acentuada escassez de recursos digitais e limitação de conectividade nos territórios indígenas, de tal modo que foi fundamental o trabalho dos tutores focado no suporte pedagógico e tecnológico dos participantes. A multiplicidade de estratégias adotadas para a construção e condução do curso foi capaz de superar boa parte dos obstáculos previstos e encontrados, permitindo desenvolver profissionais para o cuidado com esses povos tradicionais que, de outra maneira, não conseguiriam acessar o conteúdo. Apesar das limitações encontradas, considerando a complexidade das questões logísticas e culturais, a adesão e permanência do público-alvo foi satisfatória e o propósito do curso, alcançado.