Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A invisibilidade da violência simbólica contra mulheres
Eline Freire Monteiro, Márcio Mariath Belloc

Última alteração: 2022-01-18

Resumo


Apresentação: Este trabalho aborda uma forma sutil de violência contra a mulher, a dimensão simbólica, mas que é capaz de suscitar tanto sofrimento quanto agressões físicas. Esta forma de violência faz parte da estrutura das sociedades patriarcais e, por isso, não conta com o reconhecimento social em suas manifestações, por vezes sendo difícil até para a própria vítima se reconhecer neste lugar. A articulação deste tema se dará a partir da análise do romance “A vida invisível de Eurídice Gusmão” (2016), de Martha Batalha e do recorte de um caso clínico de uma jovem mulher, doravante denominada Cléo, atendida em unidade de atenção básica à saúde da cidade de Belém-PA. Podemos refletir, por estes exemplos, sobre a questão da invisibilidade da violência simbólica sofrida por mulheres em diferentes situações. No prólogo do romance, a autora nos situa que as personagens foram baseadas nas vidas de suas avós, mas podem muito bem ser confundidas com histórias atuais. O enredo fictício acompanha temporalmente os eventos da história política e social do Brasil, ambientado nos subúrbios do Rio de Janeiro do início do século XX. Mostra a criação de duas irmãs, Eurídice e Guida, em uma família simples, de laços fortemente pautados nas representações tradicionais e patriarcais, orientada pela ideologia trabalhista. Após a fuga repentina de Guida com o namorado, as irmãs têm seus caminhos bruscamente separados e recai sobre a família um abalo psicológico profundo. Então Eurídice aceita o casamento com Antenor, que a escolhe por julgá-la a candidata perfeita para se tornar uma esposa submissa e agradável; como o destino que lhe é imposto pela família, ela assume para si a responsabilidade de evitar mais desgosto a seus pais. Assim, Eurídice abandona seus sonhos de infância de seguir a carreira de musicista e o desejo de ter sucesso em uma profissão. Desenvolvimento do trabalho: O atendimento relatado a seguir teve caráter multiprofissional, sendo a construção do caso clínico mais ampla e complexa do que o exposto aqui. Foi necessário fazer um recorte dos elementos que implicam a questão da invisibilidade da violência simbólica contra a mulher. Cléo, 19 anos, chegou ao ambulatório de psicologia da atenção básica acompanhada por sua mãe adotiva “L” e sua irmã adotiva “S”. Apresentava a queixa principal de sofrimento em decorrência de deficiência auditiva, até então sem diagnóstico ou tratamento adequados. Surpreende a surdez ser notória devido à sua fala truncada e diálogo através de leitura labial, porém anos de sua vida se passaram sem que qualquer de seus familiares tivesse estranhado o fato de ela “não ouvir muito bem”. Ela sofrera durante toda a infância e adolescência com a deficiência auditiva, vivenciando diferentes aspectos do estigma que envolve a surdez: alvo de bulliyng e rejeição na escola, ser chamada pejorativamente de “surda”, “doida” ou “aquela que vive no mundo da lua” e ser tratada com impaciência pela família, que repetidamente a colocava no lugar de “incapaz”. Com certo tempo de atendimento, atravessando estados intensos de angústia, Cléo revela os jogos sexuais da adolescência, em que “por acaso” descobriu que gostava de meninas. Durante a convivência com a família da irmã “S” configurou-se o momento de conflitos mais intensos. Tanto a irmã quanto o marido são praticantes de religião evangélica e negam veementemente a homossexualidade de Cléo. No ambiente familiar tomam lugar práticas cotidianas de sufocamento e denegação da subjetividade de Cléo, que é forçada a frequentar os cultos da igreja e trabalhar no comércio do casal, mesmo contra a sua vontade, além da responsabilidade com os afazeres domésticos. Frequentemente o casal a coloca em posição inferior ou infantil, dando a entender que ela “não sabe de nada, não entende”. E ela, por sua vez, assume estratégias mortíferas de evitação de qualquer conflito, não contesta as ordens da irmã, não responde às arbitrariedades a que é submetida. O que fica evidente na fala de Cléo é que, na realidade, os conflitos entre ela e a família, dizem muito mais respeito à tentativa de negação de sua sexualidade do que a discordâncias do cotidiano. Em um momento de intenso sofrimento psíquico e desespero, ela havia contado para eles sobre a sua sexualidade, pois já não suportava esconder isso de todos, porém eles não “recordam” disso e seguem desconsiderando este fato. Pensamentos abstratos sobre a entrada na faculdade e sobre conseguir um emprego figuravam como alternativa à convivência familiar, que se tornava cada dia mais insustentável. A questão religiosa torna-se um ponto nodal de deterioração da relação de Cléo com a irmã “S”. Ela agora empreende tentativas de fazer frente à imposição de continuar frequentando a igreja da família e inicia um processo de conquistas paulatinas no sentido de uma maior autonomia. Resultados e/ou impactos: As irmãs Eurídice e Guida seguem por trajetórias diferentes, porém ambas são oprimidas pela estrutura patriarcal e machista da sociedade em que vivem. A história de cada uma nos apresenta modos de enquadramento e delimitação dos espaços discursivos, além de exemplos de práticas socialmente permitidas ou negadas às mulheres. A vida restrita ao âmbito privado, o casamento, o cuidado com as atividades domésticas e os filhos, foram por gerações incentivados para as mulheres consideradas “de família”, “mulheres direitas”, sendo que este trabalho doméstico contava, e ainda conta, com pouco prestígio social e o reconhecimento da “boa dona de casa” se dava muito mais pela condenação daquelas mulheres que não se adequavam às normas tradicionais. Apesar de desvelar diversos aspectos da opressão vivida pelas mulheres em sociedades patriarcais, o romance de Martha Batalha também apresenta elementos de desconstrução da característica de vítima, frequentemente atribuída à mulher, mostrando a sua capacidade de resistência em constantes tentativas de transpor as barreiras impostas pela opressão social. É importante perceber as estratégias cotidianas de resistência à dominação patriarcal presentes no livro. Tais estratégias de guerrilha, como diz a autora, mesmo não resultando em tamanha visibilidade e impacto social das lutas organizadas pelos movimentos feministas, fizeram grande diferença na vida de inúmeras mulheres, que se negaram à submissão completa às normas sociais de sua época e, assim, foram também exemplo para outras mulheres. Observamos que em nossa estrutura social, seja na década de 40 do século XX ou nos dias atuais, os processos de socialização dos sujeitos tratam de estabelecer estereótipos de gênero e reforçar preconceitos supostamente naturais para homens e mulheres, baseados na determinação biológica; nessa diferença se apoia a desigualdade entre os sexos. Considerações finais: Tanto a partir do recorte da história clínica de Cléo quanto do romance é possível refletir sobre as assimetrias de gênero legitimadas pela cultura como naturais à ordem vigente. As passagens do romance que tratam da vida doméstica de Eurídice, assim como fica evidente também no estudo do caso clínico de Cléo, demonstram a condição de incapacidade com que o marido e os familiares as percebem, refletindo uma construção antropológica e cultural pela qual as mulheres são concebidas como imperfeitas e incapazes para lidar com as questões da vida pública e política. Sendo associada estritamente ao contexto doméstico, a mulher termina por ser identificada a uma ordem inferior de organização social e cultural, onde os ciclos da natureza e a atribuição de funções supostamente naturais resultam no embasamento sociocultural que legitima a subordinação feminina.