Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Contrarreforma: a volta do que não foi
Károl Veiga Cabral, Marilda Nazaré Nascimento Barbedo Couto, Artur Nascimento Barbedo Couto, Márcio Mariath Belloc, Márcia Roberta de Oliveira Cardoso, Leandro Passarinho Reis Júnior

Última alteração: 2022-01-25

Resumo


O percurso de implementação da política de saúde mental no Brasil é marcado, como em outros tantos países pelo mundo, pela ascensão do modelo manicomial, no qual o saber hegemônico biomédico determina gestos e modelos de tratamento, definindo o hospital psiquiátrico como o espaço de tratamento, em especial para as populações menos favorecidas, que não podiam recorrer a outra alternativa que não fosse a internação de longa permanência. De certa forma o arranjo social que determinou a expansão deste modelo em todo o mundo condenou milhares de pessoas a exclusão social, impediu a socialização das mesmas em suas comunidades de origem e aniquilou as possibilidades de aprimoramento social, cultural, educacional e mesmo o ingresso ou permanência no mundo do trabalho. Uma vez ingressadas no hospital psiquiátrico o diagnóstico funcionava como uma sentença que virava o sobrenome e marcava toda a trajetória da pessoa afetada e sua família. Em um dado momento o laço social vigente, a abertura e a consolidação das democracias em muitos países e mesmo os avanços da ciência em comunhão com as denúncias de violações de direitos humanos aliadas a ineficácia absoluta do modelo manicomial em todo o mundo determinaram a alteração deste cenário via um processo determinado de reforma psiquiátrica. No caso brasileiro este processo vem na esteira da reforma sanitária, redemocratização do país e implementação de uma rede substitutiva de serviços determinada pela lei da reforma psiquiátrica brasileira (10216/2001). Vislumbrávamos um novo locus social para o dito louco no cenário nacional. Posteriormente a política de financiamento destes serviços de caráter comunitário e base territorial começaram a se espalhar por todo o país, ao mesmo tempo que os percursos formativos nos diferentes espaços passavam por adotar o modelo psicossocial como regra. As primeiras Portarias de financiamento do Ministério da Saúde são direcionadas aos serviços residenciais terapêuticos (2000) centros de atenção psicossocial (2002) e posteriormente avançam na constituição e implementação de outros pontos de atenção até que em 2010 é lançada a Redes de Atenção à Saúde e dentre elas a Rede de Atenção Psicossocial (2011), na qual os serviços estão organizados de forma a trabalhar em rede e linha de cuidado, garantindo um percurso assistencial seguro ao usuário e sua família. Com a implementação do modelo de rede e a mudança de modelo de atenção proposta a ampliação do financiamento para novos pontos de atenção necessariamente deveria privilegiar o segmento da atenção básica, na condição de ordenadora do cuidado nas redes, os CAPS componentes de atenção psicossocial estratégicos, os componentes de atenção de caráter transitório assim como os da desinstitucionalização, e a atenção hospitalar sem esquecer a urgência e emergência e o SAMU. A proposta implica com que cada componente trabalhe de forma articulada, mantendo um bom fluxo de comunicação de forma a garantir um percurso assistencial seguro que é demandado pelo usuário e sua família. Cada componente vai receber financiamento específico e as necessidades locorregionais devem ser garantidas no investimento estadual e municipal, já que o SUS é tripartite.

Ocorre que em 2017 uma ruptura do pacto social afeta a linha de financiamento da política de saúde mental, álcool e outras drogas e o modelo de atenção começa a experimentar fortes alterações. A última eleição presidencial em 2018 aprofunda estas mudanças retornando ao velho modelo manicomial, reforçando os investimentos em internação e atenção ambulatorial e um super investimento nas comunidades terapêuticas como espaços de contenção e exclusão da população em uso de substâncias psicoativas. Uma rápida análise dos investimentos feitos na RAPS nestes últimos anos deixa muito claro o que está acontecendo.

A rede de CAPS AD no ano de 2021 em todo o país é formada por 457 CAPS assim distribuídos: CAPS AD 327, CAPS AD III 127, CAPS AD IV 03, demonstrando uma desaceleração na implantação do serviço, estagnação em alguns estados e até fechamento de serviços em outros. Atualmente (2021) para todas as modalidades de CAPS (não apenas AD) num total de 2.742 (dois mil, setecentos e quarenta dois) serviços habilitados, distribuídos em 1.845 (um mil, oitocentos e quarenta e cinco) municípios em todos os Estados e no Distrito Federal, dispõe-se de investimento de incentivo de custeio anual no valor de R$ 1.234.308.138,00 (um bilhão, duzentos e trinta e quatro milhões, trezentos e oito mil e cento e trinta e oito reais). Enquanto isso apenas para as cts o governo federal através da SENAPRED repassou 600 milhões para financiar 700 comunidades no território nacional ou 17,3 mil vagas. O quantitativo de financiamento empregado nesses dispositivos revela a escolha política da gestão em relação ao modelo que considera eficaz para o cuidado em saúde mental, funcionando portanto como uma estratégia política para implantar/ampliar o modelo eleito. Cabe destacar que ainda em 2021 o Ministério da Cidadania na figura do seu secretário nacional de cuidado e prevenção à droga, Quirino Cordeiro, anunciou a contratação de mais 203 Cts, que destaca como as novas protagonistas, que juntas ampliam a oferta de vagas em 6,3 mil, totalizando 17,3 mil vagas financiadas pelo governo, refletida no salto de 40 milhões no início de 2018 para 193,2 milhões entre 2020/21.

O financiamento de uma política se torna mais ou menos atrativa aos municípios que são os responsáveis pela implantação dos serviços. Se considerarmos o desafio da reforma psiquiátrica em promover a mudança radical de paradigma, os valores que foram adicionados aos tetos financeiros como pagamento de novos procedimentos, sem dúvida motivavam os gestores locais. Um exemplo está na Portaria 148/12 que definiu as normas de funcionamento e habilitação do Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, do Componente Hospitalar da Rede de Atenção Psicossocial, e instituiu incentivos financeiros de investimento e de custeio. O valor das diárias considerado para o cálculo de custeio anual dos leitos de atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas foi o seguinte: R$ 300,00 (trezentos reais) por dia até o 7º dia de internação; R$ 100,00 (cem reais) por dia do 8º ao 15º dia; e R$ 57,00 (cinquenta e sete reais) por dia a partir do 16º dia de internação. Isso mostra claramente o incentivo na direção da redução do tempo de internação, ou seja, quanto menor o tempo de permanência do usuário em crise no contexto hospitalar, maior seria recurso financeiro dispensado ao serviço. Há, portanto, investimentos de várias ordens e origens fixados em favor da desinstitucionalização e do cuidado em território, que culminariam no encerramento das vagas em hospitais psiquiátricos dando fim a práticas manicomiais e de violação de direitos.

Verifica-se, portanto que a política atual reflete a volta de financiamento exclusivo para internação em detrimento dos demais serviços de rede instalados no território nacional, anunciando que tal prática nunca deixou o imaginário popular e que ganha força em um projeto político de desmonte dos serviços públicos e da própria essência do SUS.