Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Rádio Se Liga Aí: um dispositivo de saúde mental coletiva, produção de vida e cidadania
Márcio Mariath Belloc, Dayvidson Daniel Caraciolo Fernandes, Paulo Henrique de Oliveira Costa, Sidey Chagas, Vitoria de Amorim Almeida, Antônio José da Silva Sena, Wandizio de Jesus Rodrigues, Luana Borges Teixeira

Última alteração: 2022-01-18

Resumo


O presente trabalho apresenta e analisa uma ação no campo da saúde mental coletiva, que utiliza espaço virtual das redes sociais e aplicativos de mensagens para a difusão, mas que tem articulação da presença e do encontro para a produção de narrativas como criação de cidadania. Trata-se da Rádio Se Liga Aí, um projeto comunicacional alternativo, vinculado à Secretaria Municipal de Saúde (SESMA) de Belém/PA, nascido no coração da Amazônia e da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Assim como outros projetos comunicacionais antimanicomiais ao redor do mundo (como os exemplos da espanhola Radio Nikosia, da argentina Radio La Colifata, da italiana Radio Fragola, da brasileira Rádio TamTam e um longo et cetera) nossa rádio se constrói como um dispositivo de cuidado e ação social, centrado na construção participativa e plural, engendrando um espaço comum no qual a chave de entrada é o respeito à singularidade e ao protagonismo cidadão.

Não obstante, o projeto surge de um fracasso. Ocorre que no início de 2021 a Unidade de Acolhimento Adulto (UAA) de Belém foi contemplada na nova gestão que se iniciava com uma supervisão clínico-institucional quinzenal. Contudo, nesse início, algumas reuniões de supervisão marcadas com os trabalhadores eram esvaziadas. Estes não compareciam no horário marcado, por motivos que não cabem aqui comentar, pertencem ao processo de gestão e supervisão. De todas as formas, a supervisão fracassava. Mas como o supervisor tinha esse tempo livre, ficava na UAA conversando com os usuários ali acolhidos. Entre cafés e conversas despretensiosas ao redor da mesa do belo quintal da casa que abrigava essa unidade, certa feita esse fracassado supervisor, naquele instante apenas um companheiro de bate-papo, conta de sua experiência em rádios antimanicomiais. Naquele mesmo dia coletivamente surge a ideia: e por que não fazemos a nossa rádio? Começamos com um primeiro exercício de reunião de produção. Chegamos ao tema: as dificuldades durante a pandemia da Covid19 das pessoas que moravam na rua. Todos ali tinham tido a experiência da situação de rua, alguns durante a pandemia. Pensamos o formato: Dayvidson como repórter, entrevistaria os companheiros. Incluímos música, pensamos uma vinheta de abertura gravada na voz de Márcio – ou melhor, o Professor, tal como é chamado pelos companheiros de rádio – e quando nos demos conta, já tínhamos o primeiro programa. Desse exercício que surge do fracasso do lugar demarcado de supervisor, produz-se um projeto comunicacional que faz fracassar os estigmas e pré-conceitos vinculados aos diagnósticos, ao usuário de drogas, às pessoas em situação de rua.

Se Liga Aí é pensada e elaborada com protagonismo dos usuários e trabalhadores, que soltam a voz em relatos pessoais, reflexões, reportagens, trocas de afeto, luta, militância e arte. Tanto o formato de cada programa, quanto os temas debatidos são construídos e decididos em grupo. Até o momento da escrita desse resumo expandido, os temas foram: dificuldades em meio à pandemia; músicas que marcaram nossas vidas; histórias da rua; desistências; atendimento on-line; cobertura da entrega da novo imóvel do CAPS III Casa Mental; dia de luta da população de rua; trabalho, emprego e renda; a Casa Rua.

Não há um formato rígido de cada programa, os formatos vão sendo criados na medida da necessidade de cada tema. Não obstante, temos já seções que se fixaram como ferramentas de composição das sonoridades, que utilizamos também de acordo com o que cada programa demanda. Para estas seções criamos vinhetas como forma de composição de uma identidade sonora e estética do programa. Quando utilizamos entrevistas, na edição final elas são antecedidas pela vinheta composta coletivamente e gravada por Sidney, que diz: “essa é a voz da loucura, se liga aí nas entrevistas e reportagens”. Quando queremos incluir nossos poemas, entra a vinheta dizendo: a “Rádio Se Liga Aí apresenta poesia aí, nossos versos ligados em você”. Quando trazemos músicas para compartilhar com os ouvintes, geralmente com uma reflexão anterior sobre a música, que pode ser sobre o que ela transmite ou mesmo a que memória singular essa canção se conecta, a vinheta é com a voz e violão do Goiano, que diz: “agora na Rádio Se Liga Aí você vai ouvir sá sé si só sucesso”. Quem será repórter, quem fará uma reflexão sobre o tema do programa, que trará poemas ou músicas é decidido coletivamente, respeitando os limites e potencialidades, bem como o tempo necessário para cada integrante.

Não há uma periodicidade fixa para os programas, pois apostamos por uma temporalidade que permita a inscrição subjetiva. Eles vão sendo artesanal e coletivamente elaborados. Quando o grupo decide que o programa está pronto, ele é difundido pelas redes sociais e aplicativos de comunicação. Sendo assim, nossos programas não podem ser muito longos, justamente pelo meio de difusão. Sobre esta difusão, até agora apostamos no que temos batizado de rádio-guerrilha. Uma guerrilha que ocupa com produção de vida as redes sociais e aplicativos de mensagens, tão utilizados para notícias falsas e exposições narcísicas, para logo se recolher e formular o próximo ataque de vida e cidadania.

Tampouco utilizamos estúdio ou aparatos de alta tecnologia para a gravação e edição. Um celular vira microfone e unidade móvel para a gravação de entrevistas, ou mesmo para gravar uma contribuição e enviar por aplicativos de mensagens para ser inserida na edição – para a qual utilizamos um software livre. Livre também é a participação, não somos uma oficina terapêutica ligada a um serviço de saúde, radioterapia é para neoplasias, não é o nosso caso. Nossa ação pode até resultar terapêutica, mas o objetivo é fazermos o melhor programa de rádio, ou, mais precisamente, de podcast que podemos. Funcionamos mais como uma rádio livre dos modelos europeus. O objetivo é comunicar o que o grupo produz, da melhor forma possível.

Atualmente, a Se Liga Aí tem a maioria de suas reuniões de organização, planejamento e gravação dos programas na Casa Rua ­– dispositivo da SESMA dirigido a população em situação de rua ­–, mas também podemos ocupar uma praça, um café ou mesmo a beira do rio para tal, sempre almejando abrir espaços e encontrar novas vozes para somar. Aqui, os relatos pulsam em força e em vida, procurando democratizar e compartilhar saberes especialistas e profanos, transversalizar relações de cuidado e romper muros por meio do encontro afetivo, do discurso engajado.

Para a nossa surpresa e alegria, temos recebido um retorno entusiasmado de ouvintes de outros estados e mesmo de fora do país. Atualmente estamos, junto com a Assessoria de Comunicação da SESMA estudando a possibilidade de ancorar nossos programas em uma plataforma de podcast. Mas, a qualquer momento, quando menos esperes, podem chegar nas tuas redes sociais ou aplicativos de mensagens vozes amazônidas e libertárias, que com os acordes de Mestre Vieira iniciam com a vinheta de abertura dizendo: “zyRP 10.216, Rádio Se Liga Aí, Belém do Pará, Brasil. A vossa, a nossa, a sua voz!”