Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Ajuda e Suporte Mútuo On-line: Novos territórios na existência pandêmica
Judete Ferrari, Marilda Nazaré Nascimento Barbedo Couto, Károl Veiga Cabral

Última alteração: 2022-01-18

Resumo


O objetivo deste ensaio colocar em diálogo, num formato de texto onde as autoras dialogam entre si como numa roda de conversa, o processo de criação dos grupos virtuais de ajuda e suporte mútuo em saúde mental (SM), no contexto da pandemia da COVID 19. Alguns desses grupos foram criados e/ou potencializados pelo encontro entre as três narradoras profissionais de saúde mental das cidades de Belém do Pará, de Porto Alegre e de Alegrete no Rio Grande do Sul. Tais encontros proporcionaram trocas de saberes, vivências, escuta e acolhimento, teceram uma rede virtual de trocas denominada de Rede Maninha, em alusão a uma expressão muito usada no Pará para expressar afeto, cumplicidade, proximidade, parceria, irmandade, intimidade e familiaridade.

A partir do início do ano de 2020, o cenário da pandemia no Brasil colocou inesperadamente os profissionais de todas as áreas da saúde, bem como toda a população, num território de dúvidas, inseguranças, medos, sentimentos e reações que tomou a todos de assalto, frente ao perigo que o coronavírus passa a representar. Para estes profissionais o perigo e a insegurança não centraram-se tão somente na possibilidade do contágio em si, mas também nas violações das normas de biossegurança presentes em muitos serviços da rede de atenção à saúde, que não ofereceram os equipamentos de proteção individual (EPI) e outros cuidados necessários ao trabalho seguro na pandemia.

Segundo Boaventura Santos (2020) a pandemia apenas agravou uma situação de crise a que todos já estávamos sujeitos evidenciando a degradação dos serviços públicos nos últimos anos, causada principalmente por cortes nos investimentos financeiros para alguns setores, como o setor saúde. O autor afirma que em muitos países, os serviços públicos de saúde estavam mais bem preparados para enfrentar a pandemia há dez ou vinte anos do que estão hoje.

O avanço da pandemia, a falta de leitos e de demais dispositivos de intervenção, prevenção e tratamento, nos colocaram frente a frente com uma realidade que não podíamos negar: precisávamos nos proteger. Quarentena e isolamento físico se tornaram palavras de ordem e os decretos governamentais dos estados aqui citados, bem como as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontavam que trabalhadores com mais de 60 anos de idade e/ou com comorbidades especificadas, deveriam realizar trabalho remoto, caso a natureza do trabalho assim o permitisse. Este era o caso de Marilda e de Judete Ferrari.

Enquanto a OMS alertava sobre o impacto da pandemia na saúde mental (maio de 2020) a COVID-19 interrompeu serviços essenciais de SM em 93% dos países em todo o mundo. O aumento da demanda por SM demonstrado em pesquisa de 2020 realizada pela OMS envolvendo 130 países, aponta como fator de risco: o isolamento social, ao medo de contágio e a perda de membros da família, agravados ainda pelo sofrimento causado pela perda de renda e, muitas vezes, de emprego.

O foco das gestões estaduais e municipais na rede hospitalar deixou o restante dos serviços das redes a descoberto e milhares de profissionais contaminados e afastados e com a RAPS não foi diferente. Serviços viram seu horário de funcionamento ser reduzido e os trabalhadores atuarem em regime de escala. O dispositivo do grupo, amplamente adotado nos serviços de saúde mental foi proibido de acontecer por razões óbvias. Novas regras de acesso foram estabelecidas, assim como protocolos de segurança por conta do risco de contágio. Durante este tempo, muitos serviços, ainda que com funcionamento restrito, seguiram sem receber EPI, nem treinamento específico, nem equipamentos para permitir o contato com os usuários como chips de celular, telefone fixo funcionando, internet, computador etc, ou mesmo lugar de fala reconhecido dentro da pandemia. Os trabalhadores, em muitos casos tiveram que “tirar da cartola” formas de garantir o acesso dos usuários aos serviços, pois viram gradativamente ao tempo que a pandemia não arrefecia, o aumento da demanda e a necessidade de criar formas de acolhimento as demandas, corroborando os achados da pesquisa da OMS.

Foi em meio a este reboliço e tantas incertezas que constitui-se a aposta por trabalhar com grupos de suporte a ajuda mútua on-line, Károl é a ponte que coloca a experiência do norte desenvolvida por Marilda Couto em um CAPS em contato com a experiência do sul protagonizada por Judete na atenção básica. Este primeiro contato já gerou um grupo de whatsApp entre nós três, criado em maio de 2020, chamado Papinho on-line que tem como imagem duas mãos que se cumprimentam, das quais nasce uma flor, com a seguinte frase: “ninguém solta a mão de ninguém.”

Esta imagem e esta frase são muito reveladoras do objetivo de criação e do espírito desse grupo. Criar coletivamente apoiando-se nas experiências exitosas já desenvolvidas. Compartilhando saberes e fazeres sem deixar de reconhecer as necessidades locorregionais. A proposta era de construir modelagens de cuidado capazes de dar suporte as demandas de saúde mental das diferentes populações.

Uma parceria profícua e genuína, nascendo entre estas três mulheres foi florindo e enredando outros parceiros na ciranda do cuidado. Uma rede vai sendo tecida e nasce a ideia de criar um grupo de suporte e ajuda mútua reunindo estas muitas pessoas que demandavam ancoragem chamado Grupo Apoio e gratidão de norte a sul. A formação dos grupos e o trabalho no Pará, no Alegrete e no encontro entre os dois territórios faz aflorar algumas questões que queremos destacar: a questão de gênero, pois a maioria das cuidadoras são mulheres nas famílias brasileiras (IPEA, 2015), gerando sobrecarga ampliada com a Covid; a necessidade do trabalho coletivo para fazer frente ao insuportável de uma pandemia; o encontro que se gera on-line tem a potência de garantir algo de pertença, diminuindo a sensação de solidão e isolamento, e promove a troca e a construção de um grupo distante fisicamente, mas perto em afeto que também não seria possível se a necessidade da virtualidade não fosse uma premissa da pandemia.

Os anos de 2020 e 2021 foram de muitos encontros virtuais no Alegrete, em Belém e entre esses dois territórios constituindo um locus virtualmente que funcionava inicialmente das 19h até a meia noite, todos os dias da semana. As conversas eram animadas por fotos, murais construídos por uma participante, jogos, cantoria e também pelos medos, frustrações e necessidades de cada participante. A cada dia tecíamos a rede de suporte atravessando a imensidão do território brasileiro através de pontes de afetos constituídas em nossas ricas narrativas, ou melhor dito, rios aéreos que inundavam de pertença o isolamento imposto pela pandemia de norte a sul.