Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Bricoleur ou a coletiva construção de um teto-ateliê
Adriele Cardoso Sussuarana, Andressa Conceição Souza da Silva, Marcio Mariath Belloc

Última alteração: 2022-01-17

Resumo


APRESENTAÇÃO

Desde 2013, o CAPS Casa Gentileza tornou-se referência única no cuidado de pessoas com transtornos mentais graves no Estado do Amapá. A falta de manutenção colocou em risco a integridade física de todos, à exemplo do teto da escada que caiu e por pouco não lesionou uma técnica. O espaço foi interditado pela Defesa Civil por risco de desabamento em 2021. Atravessou-se a pandemia e o apagão no Amapá (2020) sem interrupção do serviço. Segundo dados do Hospital Geral Estadual, houve um aumento nas internações psiquiátricas em 70% em 2020. O período em que a casa ameaçava “desabar” convergia com o desabamento da Rede de Atenção Psicossocial e da Política de Saúde Mental do SUS no Brasil de 2020 e 2021.

Iniciou-se reivindicações por um novo local para funcionamento do dispositivo. Os atendimentos continuaram fora do prédio, ao passo que foi lançada a campanha “#CapsGentilezaSemTeto” que teve ampla adesão local. Diante o desfavorável cenário nacional, surpreendeu tal mobilização culminar na mudança de prédio.

Pretende-se esboçar um relato de experiência sobre a apropriação coletiva do novo espaço, em uma pequena sala que ficou conhecida como “Ateliê Gentileza”. A partir das reflexões de Lévi-Strauss acerca do bricoleur, propomos o recorte de tal ocupação como uma possível representação de resistência coletiva, mesmo em contexto nacional desfavorável e no extremo norte do país.

DESENVOLVIMENTO

Outubro de 2021. As atividades na nova casa aos poucos começam a retornar. A caricatura de um ambulatório predominava nas frestas e nos amplos espaços da instituição. Poucos usuários compareceram para o momento inicial de ocupação. Mas ali estávamos com alguns objetos que não utilizávamos: revistas, tintas, quadros e molduras, lâmpadas, linhas de costura, barbantes, painéis de compensado, etc. Com a intenção de compor algo que ainda não sabíamos o que era, foi-nos autorizado a utilização de uma pequena sala que a maioria dos técnicos preteriam porque às vezes retornava um odor de esgoto. Procuramos um vídeo no Youtube sobre como fazer “Lambe-Lambe”, e iniciamos sem planejamento.

Convidamos alguns usuários que aguardavam a consulta médica. Adentraram a sala, cada um à sua maneira deteve-se a alguns itens espalhados. Instantes de troca. Colávamos os recortes até a parte mais próxima ao teto. V. referiu levar uma furadeira para dispor os quadros. C. indicou que ajudaria a furar. M. trabalhava em um varal de poesias. Para além da composição de uma sala, abriu-se espaço para a construção a partir da livre integração entre usuários e técnicos.

Em dois dias concluímos uma das paredes da sala. Porém o que consideramos concluído, os usuários continuaram e continuam. Uma das expressões escolhida foi a escrita com pincéis hidrocor. A sala está imersa em versos, poesias, declarações, desenhos, expressões que pouco sabemos a autoria, mas que compõem o espaço.

Lévi-Strauss (1989) aponta o bricoleur como o que trabalha com as próprias mãos para retornar a uma coleção de resíduos. Opera com signos e não com conceitos, manuseia o que está soterrado. Se o conceito antecipa a mensagem emitida, o signo coleciona mensagens em estado de pré-transmissão. Trata-se de uma reconstrução, o significante inicia onde o significado termina. Freud (1937) compara o trabalho do analista ao do arqueólogo, se há investigação, ela ocorre com o que está soterrado, trata-se em ambos da junção de restos. Para Teixeira (2019), a invenção em psicanálise remete ao estatuto da precariedade. Assim, a práxis do analista aproxima-se à bricolagem. Ambas se constituem a partir de dejetos, sejam esses industriais ou lembranças, associações, sonhos e lapsos de linguagens.

RESULTADOS

B. um usuário que não consegue se expressar verbalmente, apresenta mãos trêmulas devido ao uso de psicotrópicos e/ou outra condição médica. Enquanto aguardava a consulta, o convidamos para entrar, ele acenou negativamente, mas enquanto cortávamos as revistas, entrava e saía da sala. Nesse “entre”, escolheu a porta para sua intervenção. Recolheu dois girassóis jogados ao chão e os colocou ao lado de um pequeno quadro já fixado a porta com a frase: “Gentileza gera Gentileza”. Apontou para um “ursinho” que estava no chão, perto das revistas espalhadas, o pegou e apontou para uma parte da porta, aparentemente indicando que gostaria de fixá-lo nela. Necessitou de ajuda para fixar. Apontou em direção aos materiais, pegou a fita, a tesoura e, mesmo com dificuldade para usar as mãos, executou a atividade com motivação e um aparente sorriso escondido atrás da máscara. C. estava retraída e sem saber o que recortar ou como contribuiria. Relatou que gosta de coisas “estranhas”, o universo “dark”. Aos poucos, folheando as revistas, destacou algumas partes, em seguida iniciou as colagens. Conforme colava, disse que constantemente se sentia julgada por apreciar coisas obscuras, os outros a tem como “estranha”. Ao concluir, abraçou a equipe. A. participou da composição quando ainda não tínhamos nada nas paredes, trouxe seus artesanatos e posteriormente um serrote emprestado de seu irmão para realizar ajustes. Ele riu bastante quando, por acaso, compôs um homem e o seu “último trago”. Há tempos tenta conduzir um processo de redução de danos do uso de crack. A. é conhecido como aquele que reivindica os direitos e com frequência incomoda os dispositivos de saúde mental e assistência social. Talvez, não por acaso, outra de suas composições incluiu um pequeno fragmento: “A sutil arte de ligar o f*da-se”. Ao finalizar, outro usuário, E. deteve-se a imagem de uma mulher com um punhal no peito a transbordar flores. Indicou que aquela imagem chamou a sua atenção e referiu o falecimento de sua mãe início do ano por COVID. Lamenta o ocorrido, indica que tal fato o abalou mas reitera que está bem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ocupação e as colagens improvisadas transformaram-se em método para recolher os resíduos da experiência de permanecer por alguns anos em uma casa prestes a desabar, e ainda, os resíduos de uma construção de política pública de trinta anos que, aparentemente, pode esvair em menos de quatro. Como sustentar um modelo de cuidado em extinção? Não temos respostas, mas através do bricoleur fica possível constatar que o furo ao modelo biomédico pode contar com o que é precário, improvisado, trata-se de intercambiar o acaso e utilizá-lo como construção do vínculo, ou melhor, do afeto e por que não, da resistência. Chama atenção a forma como um dos usuários mais fragilizados participou da intervenção: Na porta. Entre o que viria a ser o ateliê e a varanda que servia como sala de espera para a consulta médica. Talvez esse seja o lugar a ser ocupado pelos que resistem ao retorno ao modelo biomédico e à ascensão de um governo fascista no Brasil de 2022. Na linha de frente, sem hesitar, por mais desfavoráveis que sejam as circunstâncias. Se as criações bricoleur de Levi-Strauss (1989) conduz a instrumentos imutáveis até o estado de arranjo recém-criado, pode-se aproximar o Ateliê Gentileza não a uma criação artística/política, mas a um arranjo. É a aposta no seu estatuto de precariedade que justifica a escrita desse relato. Por catalisar afetos e trocas, a bricolagem se torna um veículo de resistência e um eco sobre as possíveis formas de reafirmar a saúde mental coletiva.