Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2022-01-16
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo compartilhar a experiência de construção participativa do Plano Municipal de Saúde (PM) 2022-2025 do município de Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro, como um mecanismo de democratização da gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). O PMS é um dos principais instrumentos de planejamento do SUS. Ele tem como objetivo direcionar a elaboração do planejamento e orçamento do governo na saúde, considerando todos os âmbitos de atenção, buscando garantir a realização dos princípios do SUS.
No ano de 2021, conjugou-se o início de novas gestões municipais, com a necessidade de reorganização dos sistemas locais de saúde para a mitigação e enfrentamento à Infecção Humana pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2). O cenário do SUS frente às demandas emergentes do momento pandêmico foi marcado pelo aumento na taxa de ocupação de leitos e escassez de recursos (financeiros, humanos, materiais, tecnológicos etc), aumento de internações e óbitos e agravamento das condições de saúde da população. Apesar dos avanços na vacinação, o contexto da pandemia representa grandes desafios a longo prazo, exigindo um planejamento que englobe as novas demandas decorrentes dessa experiência às outras já existentes no município, garantindo a continuidade do cuidado em saúde em todas as suas frentes.
A construção do PMS 2022-2025 representou um marco para a promoção de processos participativos na saúde em Cabo Frio. Fruto de articulações e espaços coletivos, sua elaboração envolveu os trabalhadores da saúde, população usuária, as equipes gestoras da Secretaria Municipal de Saúde (SEMUSA), o Conselho Municipal de Saúde (CMS) e sociedade civil organizada em um amplo diálogo.
A construção do PMS Participativo teve seu início em março de 2021, a partir de seis etapas: Sondagem com equipes gestoras para sistematização das principais necessidades; Pactuação da metodologia com o CMS; Oficinas temáticas com trabalhadores, controle social e sociedade civil organizada; Consulta pública online; Sistematização dos objetivos e metas; Validação coletiva dos objetivos e metas; Aprovação e divulgação.
A primeira etapa foi conduzida pela Superintendência de Planejamento da Secretaria de Saúde, através de reuniões realizadas nos setores da gestão, visando realizar o mapeamento de profissionais, atribuições, necessidades, potencialidades e projetos dos setores. Seguindo todos os protocolos sanitários, ao todo foram 25 encontros, que culminaram na elaboração de quatro eixos temáticos, dando suporte para a organização de oficinas temáticas online e para a elaboração de propostas, que envolveram gestão, profissionais e representantes do controle social: a) Atenção Primária e Promoção da Saúde; b) Atenção especializada ambulatorial, hospitalar, rede de Urgência e Emergência & regulação assistencial; c) Vigilâncias em Saúde & Assistência Farmacêutica; e d) Gestão do SUS e Participação social. Concomitante às reuniões com os setores da gestão, realizou-se a apresentação da proposta de metodologia ao CMS, visando incorporar as contribuições do controle social no processo.
Foi realizada também, uma oficina específica para o segmento dos usuários do CMS, que envolveu organizações do movimento popular, associações de moradores, além de coletivos LGBTQIA+, OAB e participação sindical. Ademais, foi realizada uma oficina online com representações de associações de comunidades quilombolas, coletivos de movimento negro, de mulheres, de juventude, lideranças de diferentes vertentes religiosas, agricultores, além de representantes da SEMUSA.
Realizou-se também uma Consulta Pública online. Por duas semanas, 311 pessoas indicaram suas prioridades para a saúde da cidade, propondo novas ações para os próximos quatro anos. Moradores de 32 bairros da cidade participaram. Desses, 75,2% se identificaram como usuários e 24,8% como profissionais; a maioria foi gênero feminino (72,3%), branca, com ensino superior ou médio; e mais de 10% eram beneficiários de algum auxílio governamental. Constatou-se também a diversidade de orientação sexual, com a participação de lésbicas, gays e pessoas não-binárias e também, a participação de 18 pessoas com deficiência.
O conjunto de 322 propostas novas indicou que as prioridades da população eram a Atenção Primária à Saúde, seguida da Atenção Especializada Ambulatorial e Hospitalar, da Assistência Farmacêutica e Vigilâncias em Saúde.
Foram definidas 88 metas a serem executadas nos próximos quatro anos, distribuídas entre os eixos: Fortalecer a APS por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo tecnoassistencial prioritário no município; Fortalecer as ações de promoção à saúde visando o enfrentamento dos determinantes sociais de saúde; Reorganizar a oferta dos serviços de Atenção Especializada e de Urgência e Emergência visando sua plena integração com a APS; Reorganizar o sistema de regulação, controle e avaliação assistencial visando promover o acesso adequado em tempo oportuno à Atenção Especializada e de Urgência e Emergência; Aprimorar as ações de vigilâncias em saúde, por meio da melhoria do suporte de diagnóstico clínico-laboratorial, aperfeiçoamento do monitoramento e controle das doenças transmissíveis, agravos e doenças crônicas não transmissíveis; Promover a equidade no cuidado à saúde visando atender as especificidades de raça, cor, etnia, identidade de gênero, prática religiosa, orientação sexual, das pessoas com deficiência, em situação de rua, entre outros grupos vulnerabilizados; Modernizar e profissionalizar a gestão municipal do SUS, visando a eficiência e efetividade das ações de governo na perspectiva de um modelo de gestão participativo que assegure a diversidade e valorize o trabalhador da saúde; e Ampliar e fortalecer a participação popular, transparência e o controle social na gestão pública. A validação das metas se deu com o envio do compilado para os setores, seguida de uma oficina presencial com Secretário e Subsecretários de saúde, e a divulgação foi realizada nas redes sociais e portal de transparência da Prefeitura.
A construção coletiva do PMS como estratégia de descentralização do planejamento gerou possibilidades de avanços no engajamento, corresponsabilização e ampliação da autonomia da equipe gestora, a partir da produção de sentido, pertencimento e da busca por diretrizes, objetivos e metas factíveis. A oferta de espaços de troca e valorização dos saberes enunciou o estímulo a uma nova cultura institucional, dialogada e participativa, até então não experienciada.
A combinação de espaços diversificados, com diferentes perfis de participação, abordagens e metodologias conferiu voz aos usuários, profissionais e gestores(as) do SUS na enunciação de suas próprias realidades, percepções de limites e potencialidades, frustrações e desejos. A pluralidade de vivências contribuiu para ampliação de ações voltadas à equidade e a superação do racismo, do capacitismo e da LGBTfobia.
As emergências cotidianas, inerentes aos processos de trabalho, de gestão e de cuidado direto à população, agravadas pelo subfinanciamento histórico do SUS, demandam respostas imediatas, que comprometem a prática do planejamento participativo enquanto função gestora. A capacidade de organização e descentralização das agendas prioritárias, a compreensão dos profissionais acerca do papel e potência do planejamento e a condução dos processos de gestão a partir da dimensão técnico-política, com setores estruturados e integrados, são medidas capazes de minimizar essa problemática e favorecer um planejamento estratégico que seja instrumento de transformação real do SUS.
Ainda, evidencia-se o grande desafio de impulsionar tais mudanças em meio a um contexto de sub e desfinanciamento do Sistema e incipiente interiorização da oferta de formação de gestão em saúde. Neste sentido, ressalta-se a importância de localizar esta experiência enquanto um processo para fazer resistir e transformar o SUS no cotidiano. Assim, fomentar e construir mecanismos de democracia participativa na saúde é indissociável da luta política pelo fortalecimento do SUS.