Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Educação e emancipação amazônidas: protagonismo e participação pela construção de saberes com crianças ribeirinhas no interior do Amapá
Ana Tereza Sussuarana, Adriele Sussuarana, Marcio Mariath Belloc

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


APRESENTAÇÃO

Saúde é democracia, assim conclamava a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), marco da reforma sanitária brasileira e do Sistema Único de Saúde. Nessa ocasião, Sérgio Arouca abre os trabalhos explicava que saúde como democracia, além do acesso a todos os níveis de atenção, prevenção, promoção e recuperação da saúde, é ter: moradia condizente com a produção de vida e em sintonia ao meio ambiente; trabalho digno e justamente remunerado; acesso à água e à alimentação de qualidade; cidadania e pluralidade política; acesso a boa educação e sobretudo, a possibilidade de viver sem medo. Demonstra que todas essas variáveis influem na qualidade da saúde da população. Este trabalho trata de uma ação educativa que se inscreve no campo da saúde coletiva nesse sentido ensinado por Arouca e que está na base do modelo sanitário brasileiro. Uma ação com crianças ribeirinhas em idade escolar de Itaubal/AP que utiliza sua própria realidade e cultura, bem como seus atravessamentos singulares, como um processo emancipatório.

Era a minha primeira vez em Itaubal e do serviço de psicologia na educação no município. Em um total de dezoito escolas atendidas, duas localizam-se na sede, seis nas comunidades terrestres e dez em regiões ribeirinhas, as quais se dividem em área 01 (escolas de difícil acesso) e área 02 (escolas de mais fácil acesso). No primeiro mês, o desejo de descobrir o que fazer ali, constantemente atravessado pela sensação de não ter ideia do que fazer. Quanto mais conhecia a distância entre as escolas, o quantitativo de comunidades, docentes e discentes, menos conseguia elaborar o que poderia fazer. Sem orientações, diretrizes ou protocolos específicos, havia empolgação de todos com a chegada do serviço de psicologia, mas um espaço de trabalho não delimitado, solto. Procurando supervisão clínico-institucional, construímos a direção para o trabalho com grupos. Iniciei, então, estudos de grupos em psicanálise, educação e o contexto amazônico; e as primeiras trocas com profissionais experientes na área da psicologia educacional. Na primeira ida campo em área ribeirinha, apostei pela modalidade grupal também como forma de estruturar a minha atuação. Escutei formal e informalmente todos que se dispusessem a conversar comigo ligados direta e indiretamente ao cotidiano da escola.

Cunha e Betini (2012) indicam que a atuação compartilhada da psicologia no contexto da educação deve considerar a parceria com outros agentes fundamentais no processo dentro e fora do ambiente da escola. Foi durante a primeira visita em uma escola que eu, pedagogo e professora, que é todo o corpo técnico da escola – realidade da maioria das escolas dessas regiões ribeirinhas: o professor acumula funções devido ao pequeno quantitativo de alunos – construímos a primeira etapa do trabalho: orientações técnicas à equipe da escola e reunião com os pais.

DESENVOLVIMENTO

Entre orientações às equipes e cartografia viva do território, na última escola visitada, durante a reunião com pais, eles pediram para que conversássemos com as crianças. Situo aqui três acontecimentos, em comunidades distintas, que inscrevem a construção metodológica que será proposta.

Na comunidade 2, em conversa informal com uma senhora, perguntei se ela gostava de morar ali, com um sorriso tímido ela falou: “Antes eu não gostava agora já me acostumei” perguntei porque não gostava e ela contou que foi morar algum tempo na capital e quando retornou “Tava tudo muito diferente, aqui era só mato – apontou para a área em frente a sua casa, área que fica entre o rio e a ponte – a gente parece que tá escondido aqui, nem parece o lugar que eu cresci, antes tinha uma praia bonita, grande, quem passava lá fora via a gente, agora não, mas agora tá cerrado aqui, a gente já consegue ver o rio, já tô acostumada”. Por medo da maresia essa senhora evita sair da comunidade, o fenômeno Maré Lançante, que ocorre periodicamente, costuma “empurrar” as comunidades que se formam ao redor do rio para dentro da mata, com frequência a geografia e disposição do território mudam.

O movimento da maré e das águas do mar, em relação a um ponto fixo, abaixam e se elevam, influenciado pela atração do sol e da lua sobre as águas do globo terrestre. Maré lançante ou lanço, é a investida da água do mar sobre o rio. Esse movimento da água, para essas comunidades provoca a erosão da terra, processo conhecido como terras caídas, o que faz com que as comunidades ribeirinhas recuem da beira do rio para dentro da mata. (MAISONNAVE; VIZONI, 2022).

Na comunidade 5, em conversa informal com uma criança, depois da roda de conversa, perguntei a ela sobre as marcas em seu corpo, eram muitas cicatrizes e para cada uma ela tinha uma história, contava-a rindo: uma foi a história do terçado que escorregou quando cortava palmito e cortou a sua barriga, outra de um objeto que a mãe jogou quando ele fugiu de um ralho (‘ato de censurar’). Senti que o corpo dele me contava as suas histórias.

Na comunidade 4, em orientação a um professor, ele pediu ajuda com relação a dois alunos, que também são irmãos, a queixa relacionava-se a compreenderem quando em sala com o professor, mas quando retornavam na semana seguinte, não lembravam de mais nada. Ao investigar sobre o contexto dos alunos e as atividades passadas pelo professor, buscamos estratégias para envolvê-los na escola e a escola no cotidiano deles, assim surgiu a ideia de montar um dicionário de palavras.

Além disso, surpreendeu-me o alto índice de analfabetismo entre as crianças em todos os anos do ensino fundamental. É muito recorrente encontrar com crianças que ainda não reconhecem as letras.

Mas que outros registros seriam possíveis, além das marcas no corpo e das histórias pelas crianças contadas? Se eles crescem sem saber escrever, quem escreve a história que contam? Quem escutará e não deixará que a maré lançante leve os saberes daquela velha mulher quando a morte a encontrar?

 

RESULTADOS ESPERADOS

Os encontros para criação de um dicionário de palavras surgem como um instrumento de apoio pedagógico para os professores construírem material personalizado que auxilie na alfabetização dos alunos. Freire (2021) compreende que a construção de métodos de trabalho no espaço escolar deverá ser coletiva, considerando as lutas conflitantes, a diversidade linguística e o espaço social de inserção da escola. Objetiva-se aqui propor a crianças ribeirinhas a construção de um Dicionário de Palavras com o repertório léxico local para auxiliar no processo de alfabetização. Através da elaboração do Dicionário de Palavras, pretende-se conhecer as histórias e as memórias de crianças ribeirinhas sobre os seus modos de vida.

O método será a pesquisa-ação (Kemmis; McTaggart, 1988). Os participantes são pesquisadores, protagonistas em seus contextos de vida e produtores de saber. Trata-se de grupos sociais na condução de melhorias de situações sociais complexas. A proposta de criação do Dicionário de Palavras pode, sobretudo, indicar a memória e as histórias que serão trazidas por essas crianças como matéria-prima, restos e rastros para uma ação em saúde coletiva. O acesso às letras a partir de seu território existencial, como uma ação emancipatória de construção desse elemento importantíssimo para integralizar essa dimensão da saúde que Arouca nos ensina como democracia.