Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Hospital psiquiátrico e morte: o surto de Covid-19 nos maiores manicômios gaúchos
Rafael Wolski de Oliveira, Károl Veiga Cabral, Roque Júnior, Larissa Dal Agnol da Silva, Marcelo Andrade de Azambuja, Sandra Maria Sales Fagundes, Maria de Fátima Bueno Fischer

Última alteração: 2022-01-23

Resumo


O presente resumo expandido trata de um relato de experiência, com a finalidade de expressar a importância do Controle Social no SUS e a capacidade de mobilização dos movimentos sociais em defesa dos usuários. No caso da saúde mental as populações que ainda permanecem asiladas em manicômios, mesmo após 20 anos da lei nacional da Reforma Psiquiátrica, a necessidade de proteção e garantia de direitos humanos fundamentais, como o direito à vida, necessitam de mecanismos de controle externos às paredes institucionais para que possíveis violações não sejam invisibilizadas.

No estado do Rio Grande do Sul, existem dois hospitais psiquiátricos de gestão direta pela secretaria estadual de saúde. O Hospital Psiquiátrico São Pedro, instituição secular, inaugurada em 1873 na capital Porto Alegre e o Hospital Colônia de Itapuã, antigo leprosário, aberto em 1940 e localizado no município de Viamão, região metropolitana de Porto Alegre.

O Fórum Gaúcho de Saúde Mental – FGSM, é um movimento social que existe desde 1992, congregando militantes em defesa da saúde mental, do cuidado em liberdade e pelo fim dos manicômios e das violações de direitos dos usuários da saúde mental e seus familiares. O FGSM realiza atividades de forma sistemática com a população em geral, usuários e trabalhadores da rede intersetorial. Além disso, tem participação e representação no Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (CES-RS) e diversos Conselhos Municipais de Saúde no estado. Os canais das redes sociais do FGSM tem um grande número de seguidores e tem sido espaços importantes de comunicação com a população, bem como um canal de denúncias das mais diversas, desde violações de direitos de usuários até situações de descaso dos gestores públicos com a rede de atenção psicossocial.

Tanto no cenário das políticas públicas em âmbito federal e estadual, no caso do Rio Grande do Sul, percebemos visíveis retrocessos no campo da saúde mental, como o estancamento de recursos de serviços da rede que prezam pelo cuidado em liberdade, o descredenciamento de serviços de caráter aberto, como os CAPS e SRTs, o aumento da orientação de recursos para Comunidades Terapêuticas, instituições de caráter asilar, e o retorno dos investimentos em Hospitais Psiquiátricos como prioridade de ambos governos. No caso do Rio Grande do Sul, o processo da Reforma Psiquiátrica e de desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos sofre sucessivas interrupções, principalmente quando assume no governo gestões que não priorizam estas ações. Neste sentido, o resultado é a existência de uma expressiva população asilada nos hospitais psiquiátricos do estado.

Em julho de 2019, primeiro ano da pandemia de COVID-19, chega ao FGSM denúncias de um surto de COVID-19 nos hospitais psiquiátricos estaduais. Embora muitas instituições de saúde tenham sofrido surtos de COVID-19 no decorrer da pandemia, a questão aqui foi a gravidade da situação nesses locais e a aparente negligência do poder público frente ao fato. As denúncias referiam a falta de Equipamentos de Proteção Individual para trabalhadores e moradores, fechamento de unidades, em decorrência do afastamento de profissionais com comorbidades, ausência de efetivo, devido ao estado não realizar concursos ou contrato emergencial para enfrentar o momento pandêmico, e o mais grave: moradores institucionalizados com quadro agudo de insuficiência respiratória não eram encaminhados para hospitais de referência para COVID-19, não tendo acesso a respiradores e tratamentos adequados de sintomas, “largados para morrer ao relento” como relatou uma das denunciantes.

Frente à gravidade das denúncias e o histórico de maus-tratos que a população institucionalizada nos manicômios sofre neste país, o FGSM mobiliza uma força tarefa para publicizar o que estava acontecendo nos interiores manicomiais em nosso estado e cobrar do gestor público providências imediatas para garantir acesso à saúde e dignidade aos moradores dos hospitais psiquiátricos estaduais.

O primeiro passo foi cobrar via Conselho Estadual de Saúde esclarecimentos e providências do gestor estadual. No entanto, todos os ofícios e convocações para plenárias e reuniões da comissão de saúde mental do CES foram ignorados. Enquanto isso, as denúncias não paravam de chegar e já relatavam mortes em ambos os hospitais, inclusive com duas pessoas enterradas no cemitério do Hospital Colônia Itapuã, rementendo aos tempos mais sombrios da história da loucura no Brasil, quando os sujeitos confinados não saiam da instituição nem mesmo após o fim da vida.

Neste momento, destaca-se o papel dos meios de comunicação oficiais e as redes sociais, o assunto foi pautado em diversos meios onde o FGSM foi convidado a se pronunciar sobre as denúncias e a situação, assim como realização de lives  problematizando a situação atual com o contexto histórico do tratamento dado a saúde mental em nosso país e os novos desafios colocados em função da pandemia, que acaba por afetar a saúde mental de toda a população. Como a situação se agravava e o gestor estadual omitia informações e tratava do assunto com inércia e ineficácia, o FGSM,  após denunciar a situação na: defensoria pública, comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa do estado, comissão de saúde da mesma instituição, na comissão de direitos humanos do Ministério Público estadual e outros órgãos, recorreu às instâncias internacionais de garantia de direitos humanos sendo direcionado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com sede em Washington (EUA). A partir deste momento, a secretaria estadual de saúde e outras instâncias de garantias de direitos locais começaram a se manifestar. As respostas pedidas (e não respondidas), via controle social, começam a ser atendidas. O caso virou uma questão para o estado brasileiro dar conta e os efeitos na atenção direta dos usuários foram a principal conquista, determinando a criação de fluxos de internação dos afetados com Covid-19 em hospital geral, a adoção de equipamento de proteção individual para todos, a regulação da porta de ingresso do manicômio evitando superlotação, a adoção de protocolos de biosegurança e a transparência dos dados do que ocorria nessas instituições.

Em meio a banalização da morte, manifesta pelo governo federal, e seus efeitos nos estados federativos, entendemos que a maior conquista deste movimento em defesa dos moradores institucionalizados foi a de mostrar que toda a vida vale a pena e deve ser vivida, não abreviada. Mesmo em um estado onde a banalidade da vida e da morte parece ser a tônica que orienta as políticas públicas, nos movimentamos na defesa do direito a vida. Por fim, este relato de experiência tem por objetivo mostrar que não podem passar em vão aqueles que desrespeitam o controle social, princípio garantido em lei no Sistema Único de Saúde, assim como a importância do conhecimento das instâncias de garantias de direitos, por parte das pessoas e movimentos que defendem a vida, a serem acionadas em caso de urgências como a que passamos em nosso estado.