Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Como uma onda de melancolia abateu um grupo de analistas institucionais: um fragmento da análise de implicação em uma pesquisa-intervenção
ANA CRISTINA DOS SANTOS VANGRELINO, Ana Cristina dos Santos Vangrelino, Daniel Vannucci Dóbies

Última alteração: 2022-01-26

Resumo


Este trabalho é uma parte da análise do diário coletivo de uma intervenção socioanalítica solicitada à coordenadora Diretório de Pesquisa de Análise Institucional e Saúde Coletiva. Foi realizada a encomenda para uma intervenção junto aos educadores sociais, técnicos, coordenadores e outros profissionais de diferentes equipamentos vinculados a um serviço de acolhimento a crianças e adolescentes de um município de médio porte do interior do Estado de São Paulo. Após análise da encomenda, elaboramos uma pesquisa-intervenção, cujo objetivo era analisar o processo de trabalho da equipe, especialmente as dificuldades nas relações interprofissionais que interferem no acolhimento e na rearticulação do cuidado no território.

Foi realizado levantamento de demandas. Ao analisá-las junto aos participantes, surgiram questões como: isolamento na rede de serviços; mobilização da equipe por diversas afetações; peso da decisão sobre a vida das pessoas; histórico de alta identificação dos profissionais com a entidade; “falta de respiro” no trabalho devido aos ares de urgência.

Foi feito um contrato de trabalho, com divisão de grupos e tempo da intervenção. Entretanto, a pandemia da Covid-19 chega ao Brasil em março/2020 num contexto político-econômico de desmonte das políticas públicas nas áreas sociais. Havia uma cenário de falta de garantias mínimas de proteção da população, de gestão do governo federal, de capacidade tecnológica para enfrentamento da crise sanitária. Com o fechamento de escolas, suspensão de atividades do judiciário e pedido de isolamento social, a rotina e atividades dos profissionais do serviço de acolhimento sofreu mudanças importantes, bem como interferiu na forma de condução da intervenção, sendo adaptada para modo virtual.

Especificamente, compartilharemos processos dessa intervenção a partir de uma releitura do diário, na qual localizamos, na análise de implicação da dimensão afetiva, um traço de frustração entre os analistas. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar como uma onda melancólica abateu um grupo de analistas nesta intervenção socioanalítica, produzindo conexões com a dimensão sócio-política, que permeia as práticas profissionais no serviço de acolhimento a crianças e adolescentes.

O trabalho teve a análise institucional como referencial teórico-metodológico e, na intervenção, trabalhamos na modalidade de análise institucional das práticas sociais. Monceau indica que essa análise aborda a atualização das normas institucionais na produção de subjetividade durante a prática cotidiana dos sujeitos no trabalho, que envolvem aspectos profissionais, mas também atribuição de sentidos e valores aos atos, remetendo a uma análise de implicação coletiva. Os encontros foram registrados pelos analistas em um diário coletivo de pesquisa.

O trabalho envolveu sete analistas e cerca de 80 participantes. Foram formados quatro grupos (três grupos de educadores e um de técnicos e coordenadores), prevendo nove encontros com cada um dos grupos entre março e dezembro/2020 numa frequência mensal e a possibilidade de uma assembleia geral no final. Com a pandemia da Covid-19, os encontros ficaram suspensos por dois meses e voltaram em dois grupos: um de técnicos e coordenadores e outro com educadores. Uma analista saiu e o número de participantes nos encontros ficou bem reduzido, sobretudo de educadores.

A assembleia geral não foi realizada, mas houve uma restituição presencial oito meses após o final dos encontros. A restituição foi construída num espaço coletivo de escuta sobre o processo vivido, criando a oportunidade para explicitarem os não-ditos.

Na leitura do diário coletivo, notamos uma onda melancólica que abateu os analistas, lançando questões ético-políticas em torno da prática analítica, do objetivo geral da pesquisa e dos efeitos produzidos nos encontros. Isto, ao mesmo tempo, pode ser compreendido como exercício de desnaturalização das práticas analíticas, mas também remete à insatisfação com a própria intervenção. Esta insatisfação somente foi observada numa análise posterior, não sendo trabalhada no quente do acontecimento.

Podemos compreendê-la como parte do momento sócio-histórico desvelado pela pandemia, não somente pelos adoecimentos e mortes, mas também pelo aprofundamento das desigualdades sociais e pelo peso da responsabilização individual pelos cuidados. Na intervenção, entramos em contato com precariedades vividas pelos profissionais devido ao fechamento das escolas, à suspensão das visitas às famílias, aos impasses para o desligamento de adolescentes completando a maioridade, às urgências nas ações planejadas. Certamente, essa precariedade também interferiu diretamente na intervenção, pois os participantes não receberam recursos institucionais para participarem das atividades virtuais e precisaram de celular e internet pessoal. A precariedade foi maior para os educadores, pois a maioria teria que participar fora do horário de trabalho.

A insatisfação aparece de modo diferente entre os participantes dos dois grupos. No grupo com educadores, essa insatisfação pode ser localizada na ausência nos encontros e no pedido de curso. A ausência pode ser compreendida como uma recusa “silenciosa” a entrar na lógica de seguir a intervenção desconsiderando as diversas dificuldades. Entendemos como uma forma de manifestação possível, pois não tinham voz ativa no coletivo geral da entidade. Da parte do curso, podemos dizer que havia uma expectativa de curso, ao invés da intervenção, numa perspectiva aquisição de conhecimento por uma transmissão mais direta e certificação ao final.

Enquanto isso, no grupo de técnicos e coordenadores, a insatisfação emerge no penúltimo encontro, quando uma profissional tenta verbalizar a insatisfação com a intervenção que havia sido abordada durante a reunião de equipe deles. Entretanto, isso aparece de modo evitativo, quase evasivo, exigindo uma provocação dos analistas para seguirem com a reclamação e uma sustentação de momentos de silêncio. A dificuldade de manifestar essa insatisfação com a intervenção lançou os participantes a uma análise do silenciamento deles diante de outras insatisfações nas relações cotidianas entre os profissionais e com a diretoria. Havia, inclusive, uma ameaça de demissão de determinados profissionais ou interrupção de algumas frentes de trabalho, que produziam silenciamentos e distanciamentos entre eles.

Na restituição, houve um momento quente, quando fizemos uma conexão entre uma das ações analisadoras “Manter a intervenção ‘a todo custo’, mesmo com várias dificuldades, tanto da parte dos ‘analistas’ quanto dos ‘analisantes’” e a entrega de carnês de rifa para uma das coordenadoras. Nesse momento, o grupo volta sua atenção para isto e começa a falar sobre “a conta ter chegado”. Isso movimenta uma discussão mais imediata e concreta sobre as relações de trabalho, as ordens para racionamento dos recursos financeiros e a participação em rifas para manutenção dos projetos da entidade. Na sequência, analisaram  como lidam com os encargos cotidianos, problematizando seus comportamentos disciplinados: submetendo-se a limitações das prestações de conta nas decisões do que pode ou não ser feito, dedicando grande parte do tempo às atividades burocráticas.

Como considerações finais, podemos afirmar que a análise de implicação dos analistas na sua dimensão afetiva abriu uma discussão a respeito da precarização da vida dos trabalhadores, das famílias, das crianças e dos adolescentes. Ao mesmo tempo, alerta para o quanto os analistas resvalam num tratamento precário dos conceitos-ferramentas da análise institucional, no sentido de sua instrumentalização e universitarização, que ameaçam as práticas de pesquisa-intervenção.

Por isso, observamos, nesse trabalho, ser fundamental analisar as frustrações, insatisfações e melancolias que permearam a intervenção. Essa análise de implicações permite adensar o processo de conhecimento da própria análise de modo transdutivo (leitura do diário de pesquisa ou preparação para restituição).

Esta análise das práticas sociais na área da proteção social pode ser estendida ao campo da saúde, considerando que ambos estão imersos num contexto capitalista neoliberal, que impacta os modos de produção de subjetividade dos trabalhadores sociais.