Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Ensinando fitoterapia para pajés: reflexões sobre o colonialismo
Ana Cimbleris-Alkmim, Simone de Araújo Medina Mendonça, Djenane Ramalho-de-Oliveira

Última alteração: 2022-01-17

Resumo


Apresentação: Este trabalho visa compartilhar reflexões e desafios que surgem quando se pensa ou se realiza ações de educação e saúde interculturais, a partir da práxis de uma educadora em saúde durante o desenvolvimento de trabalho de campo sobre plantas medicinais em aldeia indígena Maxakali. O objetivo do estudo é sensibilizar educadores e trabalhadores em saúde para possibilidades de atuação inclusiva e decolonial. Desenvolvimento do trabalho: A autoetnografia evocativa foi a metodologia adotada, por permitir costurar relações entre questões socioculturais e experiências próprias, promovendo ressonâncias e facilitando a reflexão e transformação de realidades. O conhecimento apresentado no contexto da experiência revela aspectos culturais inacessíveis à pesquisa convencional, rompendo dualismos como pesquisador-sujeito, educador-educando, eles-eu, colocando o pesquisado-sujeito em condições de explorar todas as nuances de sua existência, sem fronteiras entre estudo-trabalho-pessoa. A autoetnografia vem ganhando crescente reconhecimento em diversas disciplinas envolvidas com o cuidado em saúde, por auxiliar no desenvolvimento de valores e competências cruciais para profissionais, professores e estudantes, e promovendo um engajamento empático que move as pessoas à ação. Ela possibilita a compreensão mais profunda dos determinantes sociais e culturais da saúde, revelando aspectos sobre o adoecimento, estimulando a empatia e melhorando a resolutividade dos cuidados aos pacientes. Para construção da narrativa apresentada, as pesquisadoras costuraram vivências e reflexões despertadas durante o período em que a primeira autora trabalhou como docente com povos indígenas mineiros, entre 2007 e 2011, em curso de magistério e de também de licenciatura fomentados por diversos órgãos governamentais e instituições de ensino. As atividades foram oferecidas para professores das etnias Maxakali, Pataxó, Xacriabá, Xucuru-Kariri, Caxixó, Aranã e Krenak, tanto em ambientes institucionais como nos próprios territórios indígenas. A situação real e interesses das comunidades participantes nortearam o preparo dos conteúdos, empregando-se metodologias de ensino inclusivas. Foram ministradas pela primeira autora disciplinas nas áreas de ciências da natureza, biologia, saúde e plantas medicinais, focando na aplicação prática dos conteúdos nos contextos escolar e comunitário indígenas. A coleta de dados foi feita por meio de cadernos de campo e fotos dos trabalhos desenvolvidos. A partir destes dados, as autoras discutiram sobre episódios vividos e seus significados mais profundos, elaborando uma narrativa convidativa a interpretações e reflexões de uma comunidade mais ampla, a ser compartilhada de forma oral com os participantes do congresso. Resultados: Questões éticas, culturais, sociais e ambientais vieram à tona a partir do sentirpensar em saúde provocado pelo encontro intercultural. Tais temas não estão presentes apenas no contexto da educação indígena, sendo também relevantes ao educador que trabalha com grupos considerados “distintos” do seu grupo de origem, também chamados como “os outros”, “sujeitos”, ou outros termos que refletem a ótica colonial. A narrativa reconstrói diálogos sobre a relação dinâmica e muitas vezes conflituosa entre povos tradicionais e a cidade, o papel das políticas públicas e aparatos governamentais colocados em ação para atender as necessidades dos povos tradicionais no mundo real; e oportunidades de parceria entre saberes tradicionais milenares e a ciência moderna, trazendo à tona as repercussões de cosmovisões e linguagens distintas no fazer em educação e em saúde. A pedagogia norteadora das ações educativas realizadas nos cursos de formação indígena em questão propunha o respeito e o diálogo, visibilizando modos de vida e realidades às vezes invisíveis a educadores ou profissionais de saúde que vêm “de fora” das comunidades tradicionais. As explicações que cada grupo cultural ou étnico postula sobre a vida concreta e cotidiana são socialmente construídas, não havendo necessariamente visões que tem mais ou menos valia. São todas possibilidades que levam a entendimentos e ações a partir do lugar em que estão ancoradas em seus respectivos paradigmas. Considerando essa multiplicidade, não existe receita pronta para uma o ensino dialógico intercultural, sendo esse um desafio sobre o qual precisamos refletir continuamente e profundamente, rumo a intercâmbios culturais que eduquem ambas as partes envolvidas no empreendimento educativo, saindo assim da lógica da transmissão de conhecimentos vertical ou bancária. Apenas com esforço ativo e consciente, empatia e humildade o educando e o educador conseguem se despir da ingenuidade monocultural, de considerar uma única história. A experiência mostra como a os Maxakali vivem entrelaçados à natureza, de tal forma que não possuem nem mesmo um conceito ou palavra para distinguí-la de si mesmos. Porém, a perda de acesso a espécies medicinais relevantes implica também em erosão cultural dos conhecimentos associados à biodiversidade, sendo uma perda irreparável, que força povos autônomos a (sobre)viverem às margens da “admirável” sociedade moderna civilizada. Os saberes repassados por tradição oral, necessários para o modo de vida de diversos povos tradicionais, que vinham sendo repassados por gerações a centenas ou milhares de anos, e que não podem mais ser praticados, são condenados a desaparecer. Qual seria o valor dessas práticas para os governos? Para a saúde e para a vida humana? Por que razão a manutenção deste relevantíssimo patrimônio imaterial não é priorizado pelas políticas públicas? Como e por que isso afeta o corpo branco privilegiado das autoras do trabalho? Quem sai perdendo? Quem sai ganhando? A consciência da brancura constrange e incomoda, mesmo que seja uma brancura já mais mistura, porém que ainda carrega em suas entranhas a lógica da colonização. Na língua e na prática Maxakali, uma mesma palavra designa canto e espírito. Na narrativa, o canto/espírito evocado pelo pajé rompe os limites do entendimento formal e verbal, e promove conexão além-palavras, com a humanidade única e verdadeira, talvez acessando um núcleo comum da espécie humana, extrapolada a outras espécies, e unificada enfim com a natureza. A epifania do momento promove a educação experiencial da educadora sobre seu etnocentrismo velado e limitante, e gera ruptura de fronteiras e transbordamento a outros entendimentos antes inacessíveis. Poderia a solidariedade demonstrada nas práticas Maxakali ser extrapolada a todos nós, em um compartilhamento pleno do planeta? Considerações finais: O processo educativo vivenciado destacou que a hierarquização do valor dos conhecimentos advindos de cada cultura pode ser rompida a partir do diálogo. A conscientização sobre nossa visão eurocentrada de civilização colabora para a promoção de uma ação educativa mais crítica, e menos dominadora e colonialista. Convida-se educadores e trabalhadores da saúde para que desenvolvam um trabalho ativo e diário para romper com a lógica etnocêntrica, de educação bancária e prática biomédica, ampliando o olhar sobre o fazer e o educar para a saúde. O horizonte de esperança apresentado pelas autoras é a possibilidade de uma humanidade única, e não separada da natureza.