Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A vida das mulheres infames: narrativas invisibilizadas de vítimas de violências e vulnerabilidades e a articulação do cuidado como produção de vida
Márcio Mariath Belloc, Károl Veiga Cabral, Carla Leão

Última alteração: 2022-01-19

Resumo


O trabalho resgata narrativas ocorridas no encontro entre trabalhadores da área da saúde e mulheres em situação de violências e vulnerabilidades por ocasião da 3ª edição do Projeto Redes da Fiocruz (2017) em Porto Alegre/RS. O projeto tinha como eixo central a garantia do acesso com integralidade das mulheres às redes de cuidado e proteção, da articulação intersetorial, colocando em movimento diferentes pontos das redes locais para viabilizar projetos de vida. Acompanhamos itinerários de cuidado e busca de direitos destas mulheres para auxiliar na construção de saídas viáveis ao processo de exclusão, violências e invisibilidade. Realidades que testavam a capacidade do sistema e com as quais outros projetos de acompanhamento haviam fracassado no passado.

Ao iniciarmos o trabalho constatamos a fragmentação das redes que poderiam dar suporte as mulheres, com barreiras de acesso, tanto da macropolítica e criadas pela precarização das redes locais, quanto as oriundas da micropolítica do trabalho, muitas vezes sem a percepção dos trabalhadores sobre tal produção. Deparamo-nos com um cenário de desmantelamento, precarização, com trabalhadores(as) em profundo sofrimento, angustiados tentando produzir em meio a uma série de transformações que não forma pactuadas em nenhuma das instâncias do controle social. Congelamento de recursos para a saúde à nível nacional, ausência de repasses sistemáticos para as redes locais. O estado mínimo vivido em ato como desamparo e violência. Um cenário muitas vezes paralisador para as equipes. Em que pese as leis e diretrizes para que as equipes trabalhassem em rede e linha de cuidado, o cenário local era desalentador. Fragmentação, falta de perspectiva e impotência dos trabalhadores, em muitos casos até de adoecimento.

Com essa realidade iniciamos um trabalho no campo na perspectiva de auxiliar a costurar algumas tramas, provocando linhas de cuidado endereçadas a essas mulheres. Um trabalho singular e artesanal direcionado a cada uma das mulheres com as quais nos encontramos, que se pautava na perspectiva do encontro. Que ao acionar uma pessoa da equipe, outros membros da mesma também aderissem ao processo de cuidado. Ao chegar em uma das mulheres da comunidade, tantas outras pudessem ser beneficiadas. Uma espiral de cuidado sendo desenhada de forma coletiva e sustentada nesse laço de sororidade e empatia. Mas nem todas as espirais abertas conseguiram se manter em desenvolvimento. Esta também é uma história de frustrações e equívocos daquilo que não pode vingar, dos pontos que não se entrelaçaram e de tramas que ficaram apenas no nosso ideário. É também história de perdas e de duros ensinamentos de que o ato de cuidar comporta uma postura sincrônica entre a macro e a micropolítica, envolve o desejo de produzir cuidado pela via da aposta no outro enquanto sujeito do desejo e capaz de produzir obra. Trazer hoje estas falas silenciadas é um ato de resistência, de novamente produzir marca e de  tocar contagiar outras pessoas a propor modelagens de cuidado mais mestiças, que apostem nas tecnologias leves e leves-duras (Mehry, 2002), que exerçam a escuta sensível e uma clínica no sentido da produção de vida e cidadania.

No desenvolvimento do trabalho, nos deparamos com muitas mulheres, algumas delas serão resgatadas aqui. Todas elas nos ensinaram muito sobre a produção de cuidado. Todas elas tinham sonhos e planos. Todas capazes de produzir saídas, desde que sustentadas por uma rede de apoio. Algumas se envolveram nesta espiral de cuidado e saíram desse processo em uma outra situação de vida. Outras, apesar de ingressar na espiral com toda a garra, foram varridas pelos contextos e não conseguimos sustentar o cuidado. Outras ainda acabaram sendo aniquiladas e assistimos impotentes frente a perda. Porém nenhuma delas viveu à toa. Todas produziram história. Este escrito é uma forma de trazer essas histórias a público resgatando memórias.

A própria questão do uso de drogas em uma sociedade como a nossa é pautada pelo silenciamento, extermínio (em especial o da população negra e vulnerável) e encarceramento.

As narrativas das mulheres (todas aqui com nomes fictícios) que traremos a visibilidade aqui são: Beatriz, mulher em situação de rua, com histórico de uso de múltiplas substâncias, várias internações, partos e perdas e uma família cuja mãe mantinha um vínculo ténue com a filha, mas forte como um fio de teia de aranha, que por um lado consegue fazer um resgate de Beatriz em diferentes situações e que por outro a aprisiona em uma teia familiar complexa e caótica, que desvela um protocolo do preconceito em todas as instituições por onde passou que insistiam em impedi-la de ser mãe, que a desmaternizavam contra todas as leis e diretrizes de cuidado existentes.

Também traremos a narrativa de Espanhola, outra mulher da região centro, quase um caso misterioso. Tem companheiro, tem filhos, endereço fixo, mas um cotidiano andarilho que remete a um uso abusivo no qual ela desaparece por alguns dias, para depois retornar. Ela é bonita e descolada, mas por vezes encontra-se em tal estado que desperta no companheiro a vontade de desistir e largar tudo. No território, rumores nunca comprovados de que ela queria vender a filha para trocar por drogas. Em um de seus desaparecimentos a equipe se mobiliza e se mostra dividida sobre como cuidar. Uns pensam que é preciso internar e abrigar a pequena, outros entendem que dá pra cuidar de Espanhola em território junto com sua filha. Espanhola encontra na aposta do afeto familiar um bom motivo para continuar sonhando e fazendo planos que acabam lhe afastando do uso compulsivo da droga.

Na região da Restinga surge um caso de uma mulher que aparentemente estava em cárcere privado e seria vítima do companheiro. As equipes haviam tentando muitas abordagens, mas todas fracassavam. A família tinha filhos, alguns já haviam saído de casa e outros viviam lá, com esta mulher e este marido. Mas ao aproximarmo-nos mais, foi como abrir uma caixa de Pandora, muitos casos de abandono e negligência relativo aos filhos, tendo inclusive um óbito de um dos bebês de forma bastante controversa, violências incluindo a sexual, por parte do pai e a guarda por parte da avó de alguns destes netos por decisão judicial. Descobrem que Pandora foi interditada por problemas de saúde mental e que há muito o conselho tutelar vinha acompanhando esta família. A história de Pandora provoca nas equipes uma espécie de paralisia, mulher que deslizou do lugar de vítima para o lugar de uma possível agressora. Agora seu cárcere é o estigma, uma muralha para o acesso ao cuidado. É preciso manter a caixa de Pandora aberta para que por fim, como na mitologia grega, possa emergir de lá a esperança.

Também a narrativa de Geni. Ela foi presa e depois liberada para casa com uma tornozeleira para cumprir sua pena em regime domiciliar. Foi morar na Restinga. Saiu da cadeia com um papel com os serviços e os contatos que podia procurar, previamente articulados pela equipe do presídio feminino. Ao chegar no território, teve que mudar de endereço e, portanto, as referências de serviço se esfumaram no ar. Ela até buscou outros pontos da rede, mas não consegue ser acolhida. Egressa do sistema penal, os muros agora são de preconceito e exclusão. Exige de Geni muita coragem e a necessidade de diferentes pontos de apoio para seguir nesta caminhada da tão almejada reinserção social.