Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O Diálogo na Transitividade do Trabalho em Saúde: fragmentos de um diário de campo em pesquisa participativa
Alex Simões de Mello, Sonia Acioli

Última alteração: 2022-01-20

Resumo


Apresentação: A complexa dinâmica atribuída ao campo da saúde, sobretudo na Atenção Básica (AB), tem demandado maiores esforços dos gestores, pautado em políticas públicas que por razões diversas encontram dificuldades em atender as reais necessidades da população.  Os desafios enfrentados pelos trabalhadores da saúde, neste viés, têm sido intensificados pelos ataques e desmonte ao Sistema Único de Saúde (SUS), que no cotidiano das práticas nos territórios tem sofrido com a precarização do trabalho. Esse panorama serviu como pano de fundo para uma pesquisa de doutorado realizada no Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do rio de Janeiro (PPGEnf - UERJ), que dentre outros objetivos, buscou identificar as relações de trabalho e prestação de cuidado mediada por um agir pedagógico, materializado pelo apoio matricial na ótica da Educação Popular em Saúde (EPS), em um município da região Centro-Sul Fluminense. Entretanto, para este trabalho, objetiva-se compartilhar fragmentos sistematizados da experiência vivenciada na produção de uma pesquisa participante desenvolvida com trabalhadores da AB do município de Paraíba do Sul – RJ, sob a perspectiva político-metodológica da EPS.

Desenvolvimento do trabalho: A pesquisa foi desenvolvida no período entre setembro e dezembro de 2019, envolvendo um universo de 258 trabalhadores e a adesão de 32, em um processo de construção coletiva composto por etapas, que partiram da contratualização de agendas com a gestão central e os trabalhadores da AB, perpassando a coleta e validação dos dados, e findando na constatação de um movimento inicial em prol da transformação nos processos de trabalho (transitividade). O primeiro contato com a gestão municipal e na sequência com os trabalhadores, em busca de adesão à pesquisa, foi fundamental. Esse momento, organizado em seis encontros, foi dinamizado por rodas de conversas, partindo dos objetivos do projeto e apontando a implicação dos participantes como protagonistas na investigação e ação propositora do estudo. A organização e operacionalização da coleta dos dados contou diretamente com a participação dos trabalhadores que aderiram a proposta da pesquisa. Lançou-se mão de entrevistas semiestruturadas para o levantamento do perfil dos participantes; a realização de oficinas pelo método World Café para a reflexão dos temas emergentes; e a utilização da observação participante como meio de interação com tais temas, em ato. Como fonte documental desta sistematização, a observação participante se deu por imersão no processo de trabalho das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e Núcleo Ampliado de Saúde da Família – Atenção Básica (NASF-AB) durante todo o período de obtenção dos dados. Os registros foram compilados em um diário de campo, e trazidos aqui alguns dos registros em primeira mão. A pesquisa atendeu a todos os requisitos éticos e teve sua aprovação sob o parecer nº 3.577.440, de 16 de setembro de 2019.

Resultados e/ou impactos: No início, aos primeiros contatos com os participantes da pesquisa, tudo parecia distante e impalpável. Havia um temor generalizado, de que tudo que fosse desvelado pudesse servir como elemento indutor para o aumento dos conflitos que existiam nas difíceis relações entre os trabalhadores, e destes com os diferentes níveis da gestão municipal. Porém, a incorporação dos princípios da EPS desde as etapas embrionárias do projeto, com destaque para o diálogo, a amorosidade, a problematização e o compartilhamento de conhecimentos, garantiram o respaldo necessário durante a investigação, envolvendo cada trabalhador como parte imprescindível do processo, para além da interação direta e dialógica com o seu trabalho nas unidades de saúde. Esse movimento em rede intersubjetiva trouxe aos trabalhadores a consciência de um protagonismo que extrapolou a frágil ideia de mero participante do estudo. Facilitou a imersão de cada um à sua maneira, em um processo crítico-reflexivo do trabalho na AB, das interfaces do seu agir com outros setores, e do impacto final na vida dos usuários dos serviços. Estruturava-se um agir pedagógico pautado em uma práxis que aos poucos caminhava para uma transitividade, provocando mudanças em outros integrantes das equipes de saúde, que até então não faziam parte da pesquisa. Observou-se um processo de ‘pesquisa-ação-movimento’, que como uma onda foi mobilizando outros atores das equipes de saúde e da gestão. Os conflitos, identificados ao longo das visitas as unidades, bem como o acompanhamento longitudinal do trabalho das equipes nas diferentes atividades de gestão e atenção ao cuidado da população nos territórios, centravam-se na falta de diálogo e compartilhamento de saberes e de práticas. O individualismo, a carência do olhar crítico, o descompromisso, a falta de empatia, a deficiência em manter dispositivos disparadores para a reflexão (diálogo), a intransitividade focada em saberes e práticas restritas, formulações padronizadas e ausência de uma historicidade atribuída à vida foram as barreiras mais marcantes observadas na pesquisa, e que se revelaram como alvo do sofrimento para estes trabalhadores. A pesquisa, mediada maciçamente pelo diálogo e compartilhamento de saberes e práticas pôde focar nestes problemas e promover a sua ressignificação para muitos dos participantes e gestores. Essa transitividade teve no apoio matricial, especificamente em sua dimensão pedagógica, o principal articulador sobre as necessidades de mudança. Consequentemente, no trajeto percorrido entre idas e vindas as unidades, foram observadas que as transformações começavam a acontecer, rumo a emancipação e ao compromisso com a construção de um projeto democrático e popular de trabalho e de prestação de cuidado, ampliando a perspectiva de mudanças pautada nas bases da EPS. Nesse contexto, os agentes comunitários de saúde e os profissionais do NASF-AB foram os que mais demostraram essa inquietação, e também foram aqueles que mais se queixaram dos processos em curso. O olhar sobre a população assistida também sofreu modificações, passando a ser inseridos como protagonistas no plano de cuidados junto as equipes de saúde. Estabeleceu-se um novo contorno no planejamento de trabalho de algumas unidades assistenciais, principalmente aquelas cujo trabalhador recebeu um maior impacto da pesquisa.

Considerações finais: Concluiu-se que os fatores políticos e metodológicos da EPS contribuíram fortemente com o caráter participativo, crítico e propositor da pesquisa, garantindo a transitividade necessária ao processo de trabalho desses profissionais, tanto quanto o encontro com os fatores estressores, responsáveis pelo adoecimento e por boa parte da baixa resolutividade do trabalho na AB em Paraíba do Sul. O impacto produzido pela discussão do apoio matricial na perspectiva da EPS que atingiu a todos os trabalhadores como uma onda, ofereceu ao município a oportunidade de refletir criticamente sobre o seu processo de trabalho na AB, tanto quanto experimentar novos olhares sobre os mesmos fazeres.