Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Políticas públicas para a população em situação de rua: a intersetorialidade em questão
Tamires Marinho Caldas, Mônica de Castro Maia Senna, Giovanna Bueno Cinacchi

Última alteração: 2022-01-20

Resumo


O presente trabalho tem como objetivo examinar as possibilidades e os desafios à construção da intersetorialidade nas políticas públicas dirigidas à população em situação de rua no Brasil. Apresenta os resultados parciais de um projeto de iniciação científica sobre a temática, o qual, por sua vez, se articula a um projeto de pesquisa e extensão mais amplo sobre a população em situação de rua em um município da região metropolitana do Rio de Janeiro. Na elaboração desse trabalho, foram adotados os seguintes procedimentos metodológicos: pesquisa bibliográfica, levantamento documental e observação sistemática decorrente do trabalho de campo, ainda em andamento, junto a instituições públicas, organizações da sociedade civil e grupos sociais que atuam junto à população em situação de rua no referido município. O projeto foi submetido e aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa.

Embora não seja um fenômeno exclusivo da realidade brasileira e tampouco um processo recente, é possível afirmar que o número de pessoas em situação de rua tem crescido exponencialmente no país nos últimos anos, sobretudo com o avanço da pandemia de covid-19, expressando as profundas desigualdades sociais que estruturam a formação social brasileira. Sem dispor de uma base nacional de dados censitários sobre a população em situação de rua, informações disponíveis no Cadastro Único do Ministério da Cidadania referentes a novembro de 2021 indicavam a existência de 149.306 famílias em situação de rua cadastradas.

Embora esse grupo populacional tenha como uma de suas características a grande heterogeneidade em sua conformação, há consenso na literatura quanto a alguns traços comuns a esse segmento, tais como a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular e a utilização de logradouros públicos e de áreas degradadas como espaço de morada e sustento. Longe de um fenômeno estático, a situação de rua reveste-se de caráter processual, complexo e multideterminado, cujo enfrentamento, na perspectiva de garantia de direitos de cidadania e promoção da inclusão social, requer o esforço articulado de diferentes políticas sociais.

Historicamente, as intervenções públicas dirigidas à população em situação de rua oscilavam entre ações repressivas, de caráter higienista e aquelas de ajuda caritativa aos desvalidos, em geral por meio de internação compulsória. Inflexões nesse padrão começam a ganhar espaço a partir do final dos anos 1970, graças a iniciativas de governos locais progressistas. Mas é somente em 2009, por meio do Decreto Federal n° 7.053, que foi instituída uma política nacional para a população em situação de rua. Dentre as inovações trazidas por essa política estão: o reconhecimento das pessoas em situação de rua como sujeito de direitos; a definição de população em situação de rua enquanto processo dinâmico, heterogêneo, complexo e multideterminado; e a defesa da garantia de acesso dessa população a políticas públicas, articuladas tanto intersetorialmente quanto entre os entes da federação, com vistas ao enfrentamento das desigualdades sociais.

Passado mais de uma década desde a instituição dessa política, é possível identificar alguns avanços e muitos desafios a sua efetiva implantação. As políticas de saúde e de assistência social, centrais a esse segmento populacional, foram as que registraram maiores avanços. Na área de saúde, destaca-se a instituição, em 2011, do Consultório na Rua (CnaR), no âmbito da Política Nacional de Atenção Básica e cujo objetivo é ampliar o acesso à saúde desse segmento populacional, por meio de atividades itinerantes. Também merece destaque o trabalho desenvolvido pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), particularmente aqueles dirigidos a usuários de álcool e outras drogas. No caso da assistência social, a institucionalização do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) propiciou a implantação de equipamentos públicos dirigidos a esse segmento, tais como os Centros Especializados para população em situação de rua (CentroPop), os serviços de abordagem social e os Centros de Referência Especializados em Assistência Social (CREAS), além da reconfiguração das instituições de acolhimento institucional. Entretanto, poucos ou nulos avanços se verificam em outras áreas de políticas, entre elas a de habitação, compreendida como uma das mais importantes para esse segmento.

Apesar de a intersetorialidade ser reconhecida como essencial para o enfrentamento da situação de rua, não se observam mecanismos institucionais capazes de promover sua efetivação. A configuração do Estado e das políticas públicas no Brasil teve sua trajetória estruturada setorialmente, de tal modo que as políticas são organizadas isoladamente, gerando desarticulação e fragmentação das ações, sem planejamento conjunto e compartilhamento de informações. Além disso, há diferentes concepções sobre a própria população em situação de rua e seus determinantes sociais. Disputas de narrativas, mas também por recursos, sobretudo em contextos de escassez, acabam por dificultar a aproximação e a integração de conhecimentos e das práticas, fundamentais ao alcance da intersetorialidade. Há que se registrar também elementos relacionados à rotatividade na gestão e entre os profissionais, muitas vezes submetidos a condições precárias de trabalho e fragilização de vínculos. A falta de integração é registrada não apenas entre setores, como também no interior da própria política, a exemplo das dificuldades de articulação entre CnaR e os demais níveis do sistema, inclusive a própria Atenção Básica.

Esse quadro tem se agravado nos últimos cinco anos, quando, ao aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e seus reflexos na combalida economia brasileira, se somam o avanço do conservadorismo, a adoção de medidas de austeridade e o desmonte do sistema brasileiro de proteção social, com efeitos nefastos para a sociedade brasileira, especialmente para os setores mais vulneráveis. No caso da população em situação de rua, assiste-se ao alargamento de ações repressivas e de controle social, inclusive com o retorno de práticas de recolhimento compulsório, típicas do higienismo que modelou a trajetória histórica das intervenções públicas dirigidas a esse segmento no Brasil no início do século passado. Ao mesmo tempo, a pandemia expôs e aprofundou as imensas desigualdades estruturais da sociedade brasileira, ampliando os níveis de desemprego, de informalidade, de pobreza e miséria de parcela importante da população, o que aponta, mais do que nunca, para a necessidade de fortalecer as políticas inclusivas, exigindo um conjunto articulado de políticas públicas com foco na proteção social, de forma a viabilizar os direitos sociais previstos no Art. 6º da Constituição Federal de 1988.