Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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“NÃO OLHE PARA CIMA”: UMA SÁTIRA POLÍTICA PARA SE PENSAR A CONJUNTURA DA PANDEMIA DE COVID-19 NO BRASIL
William Pereira Santos, Alcindo Antônio Ferla

Última alteração: 2022-01-17

Resumo


Apresentação: Com a volta do autoritarismo no Brasil, marcado pela presença cruel e hostil do governo atual em temáticas muito sensíveis à saúde e à democracia, percebe-se o exercício de opressão sobre o território, as pessoas e as formas de vida e de viver. “Não Olhe para Cima” (Don’t Look Up, 2021) é um filme estadunidense que capta e ironiza o negacionismo e negligência, característicos de políticos com perfil que se tornou visível no enfrentamento à pandemia de COVID-19, como no Brasil e outros países. O cinema é capaz de capturar essa relação de abuso de poder e mostrar na forma de denúncia, ainda que de forma figurada. Esse é o poder político-pedagógico da arte: ativar o pensamento. Objetivou-se buscar conexões entre a história fictícia e a condução da pandemia de COVID-19 no Brasil para compreender a expansão da crise sanitária potencializada pelas condições de negacionismo, explicitada pelas condições de adoecimento, elevado número de infecções e mortes diárias, e atrasos na articulação e devolutiva de respostas. Metodologia:Refletir, contextualizar e dialogar a mensagem fílmica e a circunstância real da COVID-19, fazendo o filme funcionar como dispositivo ao pensamento sobre a crise da pandemia. Desenvolvimento/Impactos: “Não Olhe para Cima” é uma sátira dirigida e roteirizada por Adam McKay. O filme mostra uma estudante de Astronomia que descobre um enorme cometa orbitando dentro do sistema solar. A descoberta é surpreendente. O problema, porém, é que, após as conferências dos cálculos com o seu professor-orientador, torna-se visível o risco da colisão desse corpo com a Terra em poucos meses. Outro problema é: como comunicar às pessoas? Esse é o ponto de partida para a construção da sátira. Os astrônomos tentam alertar a presidente dos EUA, na Casa Branca, mas se deparam com a estupidez eleitoreira dos governantes. O país está em época de eleição e a atual presidenta tenta uma reeleição. Portanto, há um risco pessoal de falar que a Terra está com os dias contados. Estarrecidos com a hostilidade e descrédito governamentais, os astrônomos articulam-se para proferir o comunicado na TV. Mas o programa matinal do qual participam insiste em tratar o assunto com tom leviano e cômico, típico sensacionalismo do jornalismo de resultados, voltado para a audiência. Parte da população (negacionistas, alienados, governantes ignorantes e/ou mal-intencionados, oportunistas, racistas ou tudo isso junto) insiste em negar o que está acontecendo. Esse é o ponto de discussão neste manuscrito, no qual optamos por contextualizar à pandemia de COVID-19. No filme, a liderança frente à ameaça apocalíptica se assemelha ao aparelho governamental brasileiro, responsável pela morte de um contingente expressivo de pessoas no Brasil por COVID-19. A presidente, na trama, faz o tipo negacionista do governo brasileiro, que optou por desacreditar na ciência e na gravidade da doença para defender as próprias crenças e interesses, ainda que sem qualquer diálogo com a preservação da vida e o conhecimento sistematizado. As duas figuras (fictícia e real) ganham apoio de pessoas com os mesmos ideais. A presidente tem apoio do filho e um bilionário da tecnologia. Nas lives presidenciais, o presidente brasileiro está sempre cercado por familiares, apoiadores e personagens polêmicos na política. No filme, o cometa avançava, tornando-se mais preciso o risco anunciado pelos cientistas. Em contexto real, avançava rapidamente o vírus letal responsável pela COVID-19 e uma crise multissetorial. A banalização da doença pelo negacionismo e negligência governamental às recomendações internacionais ampliaram o risco de novas infecções e mortes, como o pânico que crescia no filme. Na ficção e na realidade, a negação e a banalização foram componentes sempre presentes motivados pela perversa liderança do discurso governamental, que se estendia às aparições públicas com discurso de ódio e descompromisso social. A reunião com a presidente e os astrônomos é carregada de deboche, como são as aparições públicas do chefe do governo brasileiro, marcadas por menosprezo aos presentes, além de minimizar o quadro da pandemia e desvalorizar trabalhadores essenciais e as ações para conter o avanço da COVID-19. O mesmo foi observado no filme, evidenciado pela fala do chefe de gabinete que menospreza a organização dos serviços essenciais e atuação dos trabalhadores. É certo que o cometa e o vírus alcançam a todos, mas, como no filme, que mostra uma parcela mínima da população que preparou para si uma saída da Terra, a crise sanitária mostrou atingir desigualmente a população mais vulnerável sempre associando raça, classe, gênero e territorialidade, mostrando retrocesso na condução das políticas públicas e sociais. A descoberta do cometa, que deveria servir para articular ações coletivas a favor do Planeta, despertou interesses pessoais dividindo os países e perdendo o sentido colaborativo. Quando tinham tempo hábil para evitar o choque com a Terra, espalhava-se um discurso negacionista. O mesmo ocorreu com a COVID-19: perdeu-se a oportunidade de conter o avanço quando se desacreditou nas evidências, afastando-se das orientações da OMS que preveem isolamento espacial, medidas de proteção individual e coletiva, além de iniciativas de solidariedade e informação correta e oportuna. Como forma de precarizar as vidas e políticas públicas, ampliando a vulnerabilidade de setores e da sociedade, a proposta de Bolsonaro recomendava isolamento vertical, em que apenas alguns poderiam se proteger da ameaça global, mas sem providências complementares necessárias, como ampla testagem e monitoramento ágil dos casos. A falta de proteção aos trabalhadores da saúde, sobretudo os da linha de frente, e a condição de trabalho no interior dos serviços mostram a política de descaso e morte implantada. Sendo reproduzida, inclusive, por profissionais da saúde, cuja base bioética da autonomia está calçada na ciência e no desenvolvimento tecnológico. A corrida independente dos países para conter a explosão da Terra, nos faz pensar também no “nacionalismo vacinal” em tempos de pandemia. Sem uma resposta única que articulasse condições de imunidade, os países iniciaram a corrida vacinal com interesse de deter os direitos e faturar considerável lucro, surgindo rivalidades nacionais que comprometeram o acesso de todos e a distribuição aos países. O filme também traz outro ponto relevante: a relação das pessoas com os aparelhos de celular e a disseminação de mensagens por esse meio. O Brasil, além de enfrentar a pandemia da COVID-19, enfrenta também a pandemia das “fake news”. O compartilhamento de notícias falsas tem a mesma lógica da transmissão viral: propagam-se rapidamente, especialmente devido a conectividade tecnológica que possibilita a transmissão na forma de mensagens. Conclusão: Percebe-se, no desenrolar da ficção, um senso de contemporaneidade e registro de crises. “Não olhe para cima”, ou seja, “olhe para baixo”, é a intenção dos negacionistas de convencer e impedir a população de observar, pensar e questionar. O filme nos faz pensar no percurso ainda necessário para uma sociedade democrática e solidária, para o exercício ético da política e para a necessidade de defender a saúde e a vida. A crise civilizatória que a pandemia explicitou requer do sistema de saúde mais reflexão sobre o fazer cotidiano e um enorme compromisso da educação em produzir emancipação, como já nos alertou, há anos, o patrono da educação brasileira, Paulo Freire. Ficção, educação permanente, educação popular... o que se faz necessário é que se desenvolva o pensamento. Nesse sentido, o filme é uma obra que precisa nos convidar a olhar para todos os lados, se, como sociedade, pretendemos avançar e superar a longa fase aguda da pandemia.