Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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PICS no SUS: produção de saberes, práticas e viveres compartilhados
Luana de Oliveira Candido, Valéria Monteiro Mendes, Yara Maria de Carvalho, Laura Camargo Macruz Feuerwerker

Última alteração: 2022-01-26

Resumo


1. Apresentação

O processo de incorporação das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) no âmbito do SUS foi mais um importante passo para a produção do cuidado no cotidiano dos serviços, especialmente considerando que tais práticas podem contribuir para a problematização e para o deslocamento de intervenções práticas verticalizadas, medicalizantes, prescritivas, tecnicistas que ainda predominam no cotidiano das PICS em nosso Sistema em direção à ações mais compartilhadas em que os saberes, as necessidades e as questões que compõem a vida dos usuários sejam reconhecidas.

Considerando os pressupostos, as concepções, os valores, os saberes/fazeres que as PICS carregam, pode-se visibilizá-las como tecnologias leves, pois escuta, processualidade, corresponsabilidade, vínculo, valorização dos saberes-experiências-modos de viver são noções que as constituem.

Contudo, é preciso considerar que a publicação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPICS) e a inserção de PICS na rede não garantem por si a produção do cuidado em uma perspectiva mais compartilhada e que possibilite a “descolonização” dos saberes/práticas/modos de cuidar hegemônicos que inclui a valorização dos  dos conhecimentos/fazeres das pessoas em seu viver. Há muitos atravessamentos e tensões que compõem a incorporação pelos trabalhadores/trabalhadoras e pela gestão do que propõem as PICS, bem como para a produção de diálogos com os diferentes serviços da rede com tais práticas. Dialogamos com a abordagem genealógica, conforme privilegiada em análises do Observatório de Análises de Políticas de Saúde e de Educação na Saúde (integrado por duas autoras deste texto), na perspectiva de que ela possibilita visibilizar as forças que se apropriam de de problemas e de conceitos em diferentes contextos e momentos históricos do que resulta a produção de distintos sentidos e valores sobre estes.

Nosso propósito é problematizar o trabalho produzido em uma Unidade de Práticas Integrativas e Complementares na cidade de São Paulo, utilizando como instrumentos metodológicos os relatos de experiências que emergiram dos encontros entre usuários(as) e uma trabalhadora do referido serviço (uma das autoras deste texto) e os diários por ela construídos como um recurso para a produção de seus modos de pensar-agir em saúde. A partir dos encontros produzidos pela profissional com uma pesquisadora-sanitarista (uma das autoras deste texto) foram produzidas análises que sobre as intersecções entre formação-pesquisa-trabalho vivo em saúde, bem como movimentos fundamentais a serem coletivamente construídos nas práticas cotidianas do serviço.

2. Desenvolvimento

As PICS mais conhecidas e adotadas pelos profissionais das subáreas da saúde são as privilegiadas pela categoria médica. Em diálogo com os estudos genealógicos produzidos Ricardo Moebus e Emerson Merhy, tais PICS inscrevem-se como práticas “brancas” ou “amarelo branqueadas” ao relacionarem-se a uma tradição escrita que ignoran práticas de cuidado vinculadas aos ameríndios e africanos com tradição fortemente oral. Entre estas PICS estão a acupuntura e suas modalidades, o pilates, o reiki de usui e até o mindfulness (por vezes mais valorizado que a meditação).

Nesta perspectiva, percebe-se que a colonização produzida por forças/vetores como o modelo médico-hegemônico, o mercado, o modo de produzir as políticas públicas têm contribuído fortemente para a incorporação pelo campo da saúde (e pelos profissionais de saúde) para a produção ativa de determinado modo de pensar-agir segundo a lógica de encaminhamentos do tipo queixa-conduta que desconsidera o viver e favorece uma percepção reduzida para as distintas dimensões que compõem a vida dos usuários e destes sobre as PICS.

O usuário no serviço é convidado/constrangido a falar de sua questão específica, dificultando a ampliação do diálogo para outros campos da vida. Soma-se a isso o cuidado associado à ideia de restauração de normalidade e a construção fortemente vinculada às ofertas do serviço. Cuidar com as PICS demanda produzi-las como práticas conectadas à natureza, que reconhecem as histórias de vida e ancestralidades. Saberes afrodiaspóricos-indígenas que se interseccionam e que privilegiam outra relação com a natureza, espaço, tempo e compartilhamento dos saberes (oralidade). Há um sentido de as PICS produzirem diálogos com esta perspectiva, pois ela povoa o viver de diferentes populações que frequentam o serviço, segundo um ritmo que faz sentido em cada tempo.

3. Resultados e discussão

A definição da Organização Mundial de Saúde (OMS) para "medicinas integrativas” como práticas de cuidado aponta para o reconhecimento do contexto étinico-histórico-cultural e os aspectos afetivos de um contexto específico, evocando práticas cuidadoras marginalizadas pelo modo hegemônico de se fazer na saúde ocidental. A análise da PNPICS evidencia o predomínio de práticas cuidadoras euro-orientais (Medicina Tradicional Chinesa, Antroposofia, Medicina Ayurveda e suas modalidades) frequentemente instrumentalizadas pela racionalidade biomédica preventivista, sem o reconhecimento da “medicina” dos povos originários e de modos de cuidado em saúde “abrasileirados” com a diáspora africana como pertencentes às PICS. Isso contribui para que modos de cuidar experienciados na vida-tradição-local-origem daqueles que frequentam o serviço sejam desconsiderados, produzindo sua “não-existência” por não estarem adequados aos padrões de cientificidade, letramento e branquitude. Isso põe em evidência os múltiplos atravessamentos, tensionamentos e invenções que compõem os processos de formar, pesquisar, cuidar, produzir as políticas, pois estes não estão resumidos ao plano formal.

Entre as tensões, capturas e constrangimentos provocados pelas forças hegemônicas experienciadas no cotidiano do SUS e que inclui a construção do processo de trabalho pela gestão (organização das agendas; necessidade de indicação da prática para as queixas dos usuários em oposição à defesa da saúde como processo; modo de acolher as questões e de definir o plano de cuidado mais ou menos compartilhado com outros profissionais e os usuários).

Das experiências no serviço, partilhamos a persistência pela construção de um cuidado em que a escuta, a palavra, as experiências do outro são privilegiadas. Isso tem possibilitado, por exemplo, falas afetuosas de usuários sobre o cuidado produzido com escalda-pés. Ao falarmos sobre o uso de plantas, o compartilhamento de experiências pelos usuários de autocuidado e cuidado do outro são inúmeras. Conversas que trazem para o encontro mães, avós, o mato, a fazenda, o viver em que as mulheres frequentemente aparecem como produtoras de cuidados e de autonomia. Sem desconsiderar as linhas de força hegemônicas que nos atravessam, temos vivenciado a produção de resistências e estratégias das práticas de cuidado com as PICS. Isso tem possibilitado o encontro dos usuários com aspectos de seu viver (família, memórias, histórias) que o colocam em movimento e os aproximam dos trabalhadores, ampliando a percepção sobre as possibilidades de cuidado que o serviço pode oferecer.

4. Considerações

O trabalho em saúde é produzido em um campo de forças em permanente disputa. Sem desconsiderar o valor da publicação da PNPICS e a ampliação de profissionais dedicados a este campo de formação, pesquisa e atuação, cabe considerar que a política não é suficiente para garantir a superação do uso instrumental e funcionalista que vem colonizando o cuidado com as PICS no SUS. É preciso reconhecer e construir caminhos coletivos para disputarmos modos de descolonizar o pensar agir-pensar-formar-pesquisar-cuidar-viver. Nossos encontros com a vida que pulsa para além da doença mostram que, embora predomine uma tendência prescritiva e medicalizadora com as PICS, há trabalhadores e pesquisadores implicados com a defesa da produção da vida atuando de forma compartilhada com a potência que habita os usuários do que tem decorrido muitas composições cuidadoras nas miudezas e delicadezas de micropolíticas no SUS.