Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Faz escuro mas escrevo
Anna Letícia Ventre, Elisandro Rodrigues

Última alteração: 2022-01-24

Resumo


Pegamos emprestado o título da Bienal de São Paulo do ano de 2021,“faz escuro mas eu canto”. Pensamos que um deslocamento desse título para “faz escuro mas escrevo” pode nos ajudar a pensar em uma escrita sobre processos de/do pesquisar em educação e saúde. Em 1966 Nara Leão cantou esse verso no seu álbum manhã de liberdade, música que leva o nome faz escuro mas eu canto e que foi composta pelo Thiago de Mello e o sambista Monsueto Menezes. Nos versos da música podemos escutar: Faz escuro, mas eu canto/Por que amanhã vai chegar[…]/Vale a pena não dormir para esperar/Porque amanhã vai chegar […]. Esses versos nos fazem pensar na obscuridade de nosso tempo,  como dito Agamben  (2009, p. 62-63), para ele “o contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Ver o escuro de nosso tempo é ver o inquietante noturno, blocos de latência, pulsantes, e ao mesmo tempo vazios, uma imagem que joga com o que nos olha e com o que vemos, uma imagem que se abre e que inquieta, em suma, que nos faz pensar. Uma imagem ausência que fura, com sua luz ou com sua escuridão, o p[l]ano de fundo que compõe o que vemos. Poderíamos pensar a obscuridade como uma noite e Didi-Huberman (2010, p. 99) comenta que “é quando fazemos a experiência da noite, na qual todos os objetos se retiram e perdem sua estabilidade visível, que a noite revela para nós a importância dos objetos e a essencial fragilidade deles, ou seja, sua vocação a se perderem para nós exatamente quando nos são os mais próximos”. Existe a necessidade de “suportar a obscuridade do instante vivido” como comenta Ernest Bloch (2005, p. 23) e também de sair da noite, de infiltrar luz nas lacunas, nos pequenos espaços que estão sempre a se movimentar na obscuridade do instante.  Agamben (2009, p. 62-63) relata ainda que “todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”. Começar a escrever é sair desse escuro, é lançar pequenos pontos luz, como vaga-lumes a iluminar as noites mais escuras. Pensamos que escrever nesse tempo em que vivemos, no campo da educação e da saúde, é escrever olhando para esse escuro imaginando um amanhã. Para começar a escrever é necessário organizar as folhas dispersas. Georges Didi-Huberman em uma fala, realizada em 13 de agosto de 2021, chamada “Faire le pas”, diz ele que toda leitura é um percurso. Percurso aqui entendido como uma viagem, uma navegação, um itinerário, uma rota, etapas pelas quais passamos. Dar o passo: Escrever também é percorrer/navegar. Comenta também que a escrita não acontece sem ler ou percorrer o mundo. E isso, muitas vezes, acontece quando damos o passo, ou seja, por se decidir atravessar o marco de uma porta, a mudar de espaço. O que nos interessa nesta fala de Didi-Huberman, é o movimento de começar ou recomeçar, ou seja, fazer o movimento de dar o primeiro passo, atravessar esse sutil limiar que separa o ler do escrever. Dar o primeiro passo é sentar em nossas mesas de estudo para [re]organizar os nossos papeis amarelos para em seguida montar nossos textos nesse movimento da leitura e da escrita. Escrever é uma possibilidade de criar brechas, furos e rasgos, principalmente, quando a obscuridade de nosso tempo mostra-se tão densa. Escrever para a criação de um bolsão de instantes quaisquer, para a concentração da energia necessária para um próximo ponto de insurgência. Ernest Bloch (2005, p. 13) fala de um acúmulo de forças para um despertar: “o que é importante é aprender a esperar […] o ato de espera não resigna […] A espera colocada acima do ato de temer, não é passiva como este, tampouco está trancafiada em um nada. O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de estreitá-las”. Se escrever implica, ou passa também, por pensar o que estamos vivendo, um outro ponto que fura a obscuridade do nosso tempo é o despertar do desejo. Didi-Huberman (2019, p. 189) escreve sobre potencializar nosso desejo de modo a torná-lo político, um ato de desejo político. A pesquisa, desenvolvida nesse texto, guiou-se por esses encontros lacunares produzidos pelos atos de desejos políticos de aproximações das interseções da filosofia, da educação, da literatura e da arte visual. Ou seja, não seguiu apenas uma raiz, um único caminho de totalidade, mas se compôs de mesclas subjetivas de cada autor e autora que encontrou-se pelo caminho, provocando aparições lacunares pelo caminho como um pensamento radical que, para Didi-Huberman (2018, p. 181), é aquele que pensa no que funda e que também pensa no que se bifurca, “um pensamento capaz de migrar para fora de si mesmo, um pensamento capaz de colocar em questão seus próprios fundamentos”. A urgência pedagógica do escrever buscou no ensaio uma forma crítica, tanto poética quanto teórica, mais adequada para despertar a sensibilidade ao presente. O ensaio, sobretudo, é uma forma aberta, uma página em processo. Em um primeiro momento pode ser difícil organizarmos nossas folhas dispersas para darmos o primeiro passo, para começar a escrever. Pensamos que o que mostra-se importante nesses momentos é organizarmos nossa escrita - e nosso pensamento - entendendo esse procedimento e ato pedagógico do escrever como uma montagem, uma maneira de organizarmos as palavras em um texto. Quem sabe uma das formas de sair da noite, de sair do escuro é, como dizem Patrícia Kirst e Tânia Fonseca (2008), “inventar a vida”. Para nós inventar a vida, ou inventar uma vida passa por inventar palavras-incandescentes. Essa invenção de uma vida passa por entendermos que a escrita escrita tem uma potência política. Ou, quem sabe, de uma certa resistência como a obra de Karen Dolorez disponível no Museu do Isolamento, Resistir como quem deseja. Gostariamos de ir finalizando essa escrita dizendo que escrever é uma forma de compor imagens. Escrever é experienciar a montagem do pensamento através de imagens. Essa escrita, que se realiza na leitura, é a montagem do pensamento através da colagem de experiências de leitura, de experiências do olhar, do escutar. Escrever é fazer saltar imagens, saltar palavras, imagens-palavras, que atravessem as frestas e, como diria Foucault (2006, p. 76), “eu queria que as palavras [...] atravessassem muros, fizessem saltar fechaduras, abrissem janelas”.

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

BLOCH, Ernest. Princípio Esperança, Vol. 1. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

___________. Imagens-ocasiões. Tradução de Guilherme Ivo. São Paulo: Foto Imagem e Arte Ltda, 2018.

___________. Désirer, désobéir: ce qui nous soulève 1. Paris: Les Éditions de Minuit, 2019.

FOUCAULT, Michel. Eu sou um pirotécnico. In: POL-DROIT, Roger. Michel Foucault, entrevistas. São Paulo: Graal, 2006, p. 67-100.

KIRST, Patrícia; FONSECA, Tânia Mara Galli. Somos Imagem: o mundo é imagem. Informática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 11, n. 2 p. 34-38, jul./dez. 2008.