Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A criação do Espaço Convivência: cartografias e subjetividades em desconfinamento numa escola
Ariadna Patricia Estevez Alvarez, Grasiele Nespoli, Marise de Leão Ramôa, Marcia Cavalcanti Raposo Lopes, Nina Soalheiro

Última alteração: 2022-01-26

Resumo


A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) é uma escola pública e unidade técnico-científica da Fiocruz que oferece cursos técnicos de nível médio, de especialização e de qualificação em diversas áreas da saúde, além de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e Programa de Pós-graduação em Educação Profissional em Saúde. O objetivo deste trabalho é apresentar a experiência de criação do Espaço Convivência da EPSJV, cartografando as subjetividades em processo de desconfinamento. O Espaço Convivência tem como propósito promover encontros coletivos, convivência e cuidado entre a comunidade escolar favorecendo a construção de relações mais solidárias.

Com a inspiração no método cartográfico, que visa acompanhar processos e não representar um objeto, narramos que em junho de 2021, quando realizamos o primeiro encontro do Espaço Convivência, tínhamos um cenário em que a pandemia de covid-19 ainda estava em curso conjugada ao avanço da cobertura vacinal, o que nos indicou a importância de iniciar gradualmente o retorno das atividades presenciais na escola que até então estavam funcionando 100% através do ensino remoto emergencial. Foi por meio do contato do projeto Escola Saudável aliado com uma nova gestão da Escola que foram sinalizadas, ao Laboratório de Educação Profissional em Atenção à Saúde (Laborat), algumas situações de sofrimento psíquico entre os estudantes. Cientes da irrecusável urgência em escapar dos riscos da medicalização do sofrimento, da patologização da vida, da individualização das abordagens em saúde, assim como da necessidade de oferecer alguma resposta para as questões que nos eram apresentadas, pensamos juntos alternativas que nos convocaram a um deslocamento subjetivo. Foi possível nos deslocarmos dos nossos lugares tradicionalmente instituídos de “professoras-pesquisadoras” para experimentarmos um novo lugar de “conviventes-cuidadoras” já que também estamos implicadas com a produção da saúde coletiva, como profissionais de saúde que somos. Além disso, a experiência da pandemia produziu sofrimento para a força de trabalho da escola da qual fazemos parte, não só para os estudantes. Alinhadas com a educação popular em saúde com as premissas freirianas do diálogo, da emancipação, da amorosidade, e do compromisso com a construção de projetos democráticos populares, compreendemos o cuidado como sendo estruturado pelo afeto, e que ao cuidarmos do outro, também estamos cuidando de nós mesmas. Neste caminho está a aposta da convivência em que conviver é uma atividade de produção do comum.

Munidas e movidas com as tecnologias leves do cuidado em saúde usadas nas micropolíticas da convivência, pactuamos em nos valer da arte, da cultura, das práticas integrativas e complementares em saúde, como a aromaterapia com óleos essenciais, para começar os trabalhos em parceria com os Centros de Convivência do SUS e outras unidades da Fiocruz. Durante os meses de confinamento, a segurança alimentar do corpo discente foi garantida por meio da distribuição de kits de gêneros alimentícios, vindo à escola para retirar este kit. Acordamos que esse seria um dia propício para iniciar as atividades do Espaço Convivência.

Em sua primeira edição, os estudantes contaram com 3 atividades de acolhimento: Roda dos Afetos e Sentidos; Intervalo Musical; Dançando na Escola. Na segunda edição, em julho, uma nova atividade de música começou. Quando o ano letivo 2021 iniciou em agosto com as novas turmas dos calouros chegando na escola, tivemos uma semana inteira de acolhimento. Foi criada a oficina de mosaico, foi realizado o jogo semeando o cuidado, e oficina de relaxamento com os adolescentes do ensino médio.

Fomos chamadas a atuar também com o público adulto e noturno da EJA. Em novembro, juntamente com a CISST (Comissão Interna de Segurança e Saúde no Trabalho), construímos o Espaço Convivência com as trabalhadoras da limpeza, abrindo uma brecha para o acolhimento e diálogo. A média de público variou entre 6 e 15 participantes por atividade e no total realizaram-se 21 encontros entre junho e dezembro de 2021.

O desejo de reencontro, de tocar, de abraçar, de habitar o espaço físico, de voltar ao cotidiano escolar, a saudade dos amigos conviviam com o medo do contágio pelo vírus, o processo de luto pela perda da vida de familiares, a ruptura com muitas perspectivas de futuro e o imperativo de manter e seguir os protocolos de prevenção contra o coronavírus. Esses são alguns pontos em comum que apareceram entre os diferentes públicos conviventes.

Algumas frases ditas nas rodas nos ajudam a cartografar como as subjetividades em processo de desconfinamento foram se produzindo no habitar da escola outra vez. Na roda de música um jovem falou: “Entrei na escola, e não sabia mais onde ficava o banheiro, minha mãe me perguntou e eu não sabia responder, não lembrava, foi estranho, precisei perguntar para os outros, fazia muito tempo que não vinha aqui...”

Na atividade ‘dançando da escola’, uma mulher de mais de 40 anos que decidiu depois de muita luta na vida da lavoura voltar a estudar falou que estava ali porque “estou ansiosa e quero descobrir tudo.”

Nas “Rodas dos afetos e sentidos” foi promovido um espaço de experimentação e elaboração de afetos que emergiram no contexto de retorno das atividades presenciais. A partir de dinâmicas que passam pelos sentidos (olfato, tato, visão, audição e paladar), buscou-se despertar a reflexão sobre os sentimentos e sensações que nos atravessam. Na primeira roda, por exemplo, o relaxamento e a interação com os óleos essenciais resgataram memórias olfativas da infância e da escola, estabeleceram contato com o corpo, com a consciência de se estar vivo, inteiro e presente na escola. O sentimento que veio à tona foi a saudade, a vontade de “viver o que não se pode”, o ato de “pensar nas coisas de que gostamos e não podemos fazer”, como disseram os estudantes ao manifestarem a falta do contato, do carinho, dos abraços, das relações que se estabelecem no espaço escolar. Em outra roda, ao abordar o tato e a pele - o sentir por esse órgão que nos envolve e que nos coloca em contato com o mundo e com outros corpos – os afetos que emergiram foram o medo e a insegurança de voltar para um lugar que "não é mais o mesmo", onde estarão pessoas "que não são mais as mesmas".

O contexto da pandemia é de muita insegurança, incerteza, medo e sofrimento. Em relação a escola, a substituição das atividades presenciais pelo ensino remoto gerou muitas dificuldades para os estudantes, em especial para os do ensino médio, uma vez que a escola é um dos mais importantes espaços de troca, sociabilidade e construção de redes de apoio social para os jovens.

Entendemos que a escola deve ser construída como um espaço educativo e de cuidado compromissado tanto com a análise crítica da realidade como pela construção de caminhos capazes de transformá-la. Diante disso, a construção do Espaço de Convivência foi uma forma de religar estudantes e trabalhadores à escola, possibilitando a reflexão sobre o que estamos vivendo, bem como sobre a importância de fortalecer nossos laços, de cuidar de si e de todos, de construir novas vias para um retorno seguro e saudável às atividades presenciais. A partir do diálogo e de dispositivos como a aromaterapia, a música, a dança e a arte do mosaico foi possível acolher os estudantes em sofrimento e inquietos com o isolamento e distanciamento social, gerando um desconfinamento, não só físico, mas subjetivo com amorosidade.