APRESENTAÇÃO:

Os valores de referência e padrões de normalidade estabelecidos pela nossa época sustentam-se em um suposto alinhamento entre sexo-gênero-sexualidade. Dessa forma, as subjetividades, sexualidades e o modo hegemônico de organização das sociedades passaram a ser regulados a partir de um prisma que determina a binaridade e a cisheteronormatividade enquanto norma. Experiências que não se adequem a ela enfrentam diversas formas de violência, reais e simbólicas, e são entendidas como desviantes, errôneas e patológicas.

Nessa norma, quem nasce com pênis é designado do sexo/gênero masculino, deve se identificar como homem e seguir os papeis de gênero, vestimentas e comportamentos esperados para homens e ter atração por mulheres. Ela se aplica também à pessoa que nasce com vulva, que deve ser do sexo/gênero feminino, se identificar como mulher e seguir os papeis de gênero, vestimentas e comportamentos esperados para mulheres e ter atração por homens.

Apesar disso, a compreensão de masculino e feminino muda de acordo com os costumes, normas sociais, momentos históricos e a cultura. É a partir do conceito de gênero que podemos compreender que existem diversos modos de se viver feminilidades e mulheridades. É no contexto de discussão sobre mulheridades e feminilidades que a Teoria Transfeminista (TT) surge, enquanto uma corrente teórica e política vinculada ao feminismo, para pensar este a partir das vivências de pessoas trans e travestis.

Os profissionais da Enfermagem envolvidos na assistência a pessoas trans e travestis devem ouvi-las para conhecerem suas necessidades e percepções sobre atendimento e saúde para que, dentro dos seus saberes e práticas, elevem os padrões de atendimento e implementem estratégias que lhes assegurem a assistência desejada.

Assim, o objetivo do estudo é analisar e avaliar a TT a partir do referencial teórico metodológico proposto por Fawcett para as práticas de Enfermagem em cuidados primários à saúde.

DESENVOLVIMENTO:

Trata-se de um estudo teórico-reflexivo que se propõe a uma análise interpretativa da TT e sua aplicação na prática dos cuidados primários de Enfermagem, com base na descrição do Modelo de Análise e Avaliação de Teorias proposto por Fawcett, realizado no período de outubro a dezembro de 2021. O modelo proposto por Fawcett é composto pela análise e pela avaliação. No item análise os critérios abordados são: escopo, contexto e conteúdo da teoria. Quanto à avaliação, os critérios são: significância, consistência interna, parcimônia, testabilidade, adequação empírica e adequação pragmática.

RESULTADOS E/OU IMPACTOS:

Após análise do escopo da TT, podemos identificar um escopo amplo com conceitos e proposições gerais, voltado à aplicação de conceitos e pautas das pessoas trans e travestis ao discurso feminista. Dessa forma, a TT busca a redefinição da equiparação entre sexo e gênero, reiterar o caráter interacional das opressões, reconhecer a luta de travestis, mulheres trans e das experiências pessoas da população transgênera de forma geral como elementos fundamentais para o entendimento do feminismo e validar as contribuições de quaisquer pessoas que não se enquadrem no modelo sexista de nossa sociedade, seja ela cis ou trans.

Em relação ao contexto, a teoria deriva da crítica ao feminismo da diferença, ao feminismo negro e ao feminismo pós-estruturalista com o objetivo de desnaturalizar a identidade da mulher, no singular, enquanto categoria universal, essencialista, estática e binária. Para ela, a ideia universal de mulher, numa relação essencializada ao sexo anatômico, não contempla as diversas possibilidades de se performar gênero. Portanto, ela estabelece a existência de experiências plurais de feminilidades e mulheridades, com múltiplos recortes identitários e marcos interseccionais atravessando seus corpos.

O conteúdo de uma teoria articula-se por meio de conceitos e proposições. O conteúdo da TT sustenta-se nos conceitos: sexo, gênero, corpo, autodeterminação, identidade de gênero, mulheridades e feminilidades. Quanto às proposições, a teoria compreende gênero e sexo como construções discursivas, criadas em contextos culturais específicos. Dessa forma, homens, mulheres e outras possibilidades de gênero não têm seus corpos naturalmente sexuados ou generificados, mas vivem uma constante produção deles ao negociarem com as normas regulatórias de gênero.

Nesse contexto, o princípio de autodeterminação dá às pessoas transfemininas o direito de assumirem suas identidades de gênero e produção de corpos de forma autônoma. Nessa produção, as pessoas trans podem, ou não, utilizar hormônios, aplicações de silicone, cirurgias plásticas ou outras estratégias para produzirem um corpo que represente o gênero com o qual se identificam. É importante, então, que o profissional de Enfermagem utilize um modelo de cuidado que não esteja orientado por critérios de diagnóstico clínico nem interfira nesse processo com discursos patologizantes e moralizantes.

Os resultados da análise da teoria subsidiam a realização da sua avaliação. No primeiro critério da avaliação, a “significância”, observa-se que a teoria não define bem as unidades metaparadigmáticas centrais da enfermagem (o ser humano, o ambiente, a saúde e a enfermagem).

Quanto ao segundo critério, a “consistência interna”, os conceitos da teoria demonstram estar inter-relacionados de forma clara e com consistência semântica. Apesar da múltipla interpretação dos conceitos pelas várias vertentes de pensamento, seus conceitos são articulados e de fácil compreensão. Dessa forma, a teoria atende ao critério de consistência interna.

Em relação à “parcimônia”, terceiro critério da avaliação, a TT não é considerada como parcimoniosa por existir uma polissemia em torno de seu conteúdo e fenômeno de interesse. Apesar de seu conteúdo ser claro e conciso, pode haver dificuldades para a Enfermagem fazer uso de seus conceitos devido ao paradigma do discurso biomédico que enquadra as subjetividades trans em um contexto patologizante.

Houve limitações em relação ao tempo para execução do quarto critério da avaliação, a “testabilidade”, pois seria necessário avaliar pesquisas que aplicaram e testaram a TT, a fim de se obter conclusões mais claras sobre este critério.

A “adequação empírica”, quinto critério da avaliação, nos mostra que teoria TT é baseada na realidade e suas definições estão intermediadas entre a contação e a denotação. A teoria não foi testada empiricamente e seu grau de precisão deve ser mais bem identificado com mais investigações.

No último critério da avaliação, a “adequação pragmática”, a TT mostra-se capaz de ser aplicada a diferentes contextos do cuidado de Enfermagem na Atenção Primária à Saúde, apesar de não existirem estudos aplicando seu escopo ao Processo de Enfermagem. Portanto, é importante a realização de estudos que investiguem as contribuições que seus conceitos e proposições podem trazer para a prática de Enfermagem, no sentido de alcançar resultados favoráveis e uma qualidade segura de cuidado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Embora o modelo de Fawcett seja um método de análise e avaliação de teorias de Enfermagem, a aplicação de seus critérios ao escopo da Teoria Transfeminista mostra que seus conceitos e proposições podem ser aplicados, somados, ou não, aos de outras teorias, na prática da Enfermagem, em seus múltiplos cenários.

Além disso, a Teoria Transfeminista mostra-se socialmente relevante e a partir de sua análise crítica, constata-se que a ampliação de seu uso nos cuidados primários à saúde pode contribuir com novos conhecimentos e reflexões para a (re)orientação da prática da Enfermagem no cuidado de pessoas trans e travestis, de forma que elas sejam empoderadas para serem as protagonistas de todo o processo.