Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Projeto Kè: imigrantes haitianos e o acesso a política pública de saúde no Brasil
Marília Meneghetti Bruhn, Lilian Rodrigues Cruz

Última alteração: 2022-01-28

Resumo


O Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil é considerado o maior sistema gratuito e universal de saúde do mundo. A partir da Constituição Federal de 1988, com o princípio da universalidade, a saúde se transformou em direito de todos e dever do Estado. Antes da criação do SUS, apenas pessoas cadastradas na previdência social ou com vínculo formal de trabalho tinham acesso a serviços de saúde gratuitos. Desde 1988, a saúde tornou a ser legalmente assegurada a todos os cidadãos em território nacional, independente de raça, gênero, crença religiosa ou nacionalidade. Sendo assim, imigrantes regulares ou irregulares passam a ter direito ao SUS assim como brasileiros natos. Apesar da categoria imigrante incluir diversas nacionalidades e populações de diferentes características fenotípicas, o acolhimento e o acesso à política pública de saúde é bastante heterogêneo.

Em Porto Alegre, há, aproximadamente, 35 mil imigrantes, sendo que 49,6% dessa população é de nacionalidade haitiana. O Projeto Kè é uma ação de extensão vinculada a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Associação de Integração Social (AINTESO) - organização gerida por haitianos - que tem o intuito de promover o atendimento psicossocial de imigrantes e refugiados visando a garantia de direitos e o acesso a políticas públicas. Durante o ano de 2021, o Projeto Kè atendeu dezenas de imigrantes e refugiados, acompanhando o acesso de migrantes nas políticas públicas de saúde, educação e assistência social na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Esse projeto caracteriza-se pela assessoria psicossocial a imigrantes e refugiados realizada por profissionais e estudantes de Serviço Social e Psicologia e tradutores de creole haitiano, francês e português. O presente trabalho tem como objetivo compartilhar algumas experiências do Projeto Kè no acompanhamento de imigrantes haitianos em atendimentos no SUS.

Quando um imigrante procura atendimento psicossocial por telefone, rede social, e-mail ou presencialmente na sede da AINTESO, é marcado um acolhimento presencial ou por videoconferência no qual a equipe formada por uma psicóloga ou por uma assistente social e uma tradutora escutam as demandas desse sujeito. Após esse acolhimento inicial, a equipe constrói estratégias junto com o imigrante para que ele consiga suprir as suas demandas a partir do acesso a políticas públicas.

Em casos de maior complexidade, os imigrantes atendidos podem solicitar acompanhamento da equipe em serviços de regularização migratória, de assistência social, de educação ou de saúde. Por exemplo, no início de 2021, um haitiano foi acompanhado por uma tradutora e uma psicóloga em um atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS) que estava se recusando a fazer o seu Cartão SUS porque esse usuário do serviço não possui cédula de identidade nacional. A maioria dos refugiados e imigrantes tem passaporte, solicitação de refúgio ou Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), os quais são documentos de identificação pouco conhecidos pelas equipes de saúde. Uma conversa com o serviço de saúde sobre as documentações e os direitos da população migrante, além da comunicação facilitada pela tradutora, foi suficiente para que esse imigrante conseguisse ser atendido na UBS.

Contudo, nem sempre as soluções são tão simples. Uma imigrante haitiana que precisava ser hospitalizada não conseguiu fazer o seu cadastro no aplicativo do hospital porque era obrigatório informar o número da cédula de identidade. Após a equipe do hospital ser informada da limitação desse aplicativo para aceitar outros documentos de identificação, a haitiana continuou sem conseguir ter acesso aos seus exames realizados no hospital. Nesse mesmo hospital, um outro haitiano ficou várias semanas sem ter uma avaliação psiquiátrica porque não havia tradutores de crioulo haitiano disponíveis. A equipe médica chamou um tradutor de francês credenciado ao hospital, entretanto, apesar das semelhanças, o paciente haitiano não entendia francês e o tradutor não compreendia as frases em crioulo. Até uma tradutora do Projeto Kè conseguir fazer a tradução de crioulo para português, os psiquiatras tinham referido que o paciente apresentava “confusão mental” porque não conseguiam entender as respostas dele.

Durante os processos migratórios, há grandes impactos na saúde mental. A maioria dos imigrantes haitianos atendidos pelo Projeto Kè para acessar o SUS tinham como principal demanda questões relacionadas a transtornos psicológicos. Em um acompanhamento de paciente haitiano que estava hospitalizado devido a catatonia, após conversas com a tradutora, constatou-se que a família desse paciente havia assinado a autorização para tratamento com eletroconvulsoterapia (ECT) apesar de não ter entendido a explicação do médico e o texto da autorização. O paciente e a sua família têm o direito de serem informados adequadamente sobre os procedimentos médicos e os seus riscos antes de autorizá-los. Depois da família ser informada pela tradutora sobre como era realizada a ECT, sentiram-se enganados pela equipe médica, tratados como cobaias, e disseram que, no Haiti, esse tipo de tratamento não seria oferecido. Esse caso exemplifica como é importante que o SUS ofereça atendimentos humanizados que considerem as singularidades da população migrante, inclusive as diferenças idiomáticas e culturais.

Outro grande desafio para garantir o acesso ao SUS por imigrantes haitianos consiste nas diferenças de como funcionam os serviços de saúde no Haiti e no Brasil. O Haiti é um dos poucos países na América que não possui sistema de saúde gratuito ou universal. Todos os atendimentos médicos no Haiti são pagos e, por isso, os haitianos costumam procurar médicos apenas quando estão com doenças graves e necessitam ser curados para continuar vivos. Diferentemente do Haiti, no Brasil há investimento em promoção e prevenção de saúde e incentiva-se que os brasileiros mantenham acompanhamento médico mesmo que não tenham doenças ou sintomas. Essa diferença entre Brasil e Haiti faz com que os imigrantes haitianos tenham dúvidas e desconfianças em aderir a ações de prevenção e promoção de saúde como as campanhas de vacinação. Em contrapartida, é frequente ouvir relatos de profissionais do SUS que não conhecem as especificidades da população haitiana e tem a opinião preconceituosa de que os haitianos são preguiçosos e negligentes em relação aos cuidados com a saúde.

A falta de conhecimento sobre as especificidades da população migrante, a dificuldade de comunicação por pessoas que falam idiomas distintos e o racismo são os principais fatores que dificultam o acesso ao SUS que foram observados durante os acompanhamentos a serviços de saúde realizados pelo Projeto Kè. O racismo fica evidente quando se compara o atendimento oferecido a imigrantes brancos europeus e a imigrantes negros da América Latina. Quando homens brancos europeus ou norte-americanos são atendidos em serviços de saúde, nota-se uma preocupação em acolhê-los. Contudo, este tratamento social difere-se brutalmente das experiências contadas por imigrantes negros e haitianos. Os exemplos de haitianos atendidos no SUS que são apresentados neste trabalho dificilmente seriam relatados como experiências que ocorreram com imigrantes brancos. Infelizmente, este texto é apenas um resumo das violações de direitos que foram escutadas nos atendimentos do Projeto Kè; há muitos outros relatos que não couberam aqui. São histórias que desafiam os princípios e diretrizes do SUS a se fazerem presentes no cotidiano dos serviços, para além das palavras escritas em leis.