Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Violência doméstica contra a mulher: uma experiência coletiva de cuidado em contexto pandêmico.
Eliany Nazaré Rodrigues Rodrigues, Betina Vitória Batista Monteiro, Alícia Manuela Santos Picanço de Miranda, Biatriz Araújo Izidio Pereira, Heloísa Cristina Souza da Costa

Última alteração: 2022-01-23

Resumo


O trabalho aqui apresentado se trata de uma experiência coletiva surgida nos primeiros meses do período de isolamento mais restritivo que vivenciamos em 2020, em decorrência da pandemia de SARS-CoV-2, na cidade de Macapá, Amapá.

Em contextos de emergências humanitárias e estados de alerta sanitário mundial — como é o caso da pandemia da Covid-19 —, uma série de demandas sociais já existentes no dia a dia agudizam-se e provocam novos problemas diante da falta de preparo e estrutura em termos sociopolíticos para lidar com seu surgimento e consequências.

No que se refere à violência doméstica e período pandêmico, várias organizações da sociedade civil nacional e internacional e coletivos independentes, que possuem ações em diversos lugares do mundo, observaram um acréscimo no risco de violência contra a mulher, devido ao crescimento das tensões no ambiente do lar. Tendo em vista, ainda, o aumento dos obstáculos para fugir e denunciar situações violentas, inclusive no que diz respeito ao acesso às ordens de proteção e outras ferramentas da Segurança Pública e da Rede de Atendimento.

No Estado do Amapá, os serviços de assistência da Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência Doméstica estavam fechados, não tínhamos informação de plano de ação emergencial dos governos naquele momento. Ao mesmo tempo, havia a informação na mídia local e nacional da diminuição dos registros de violência doméstica contra a mulher.

Aos poucos, com o avançar dos meses de 2020, o judiciário e as delegacias especializadas começaram a funcionar com atendimento remoto, mas os serviços de assistência ainda não haviam retornado e muitos profissionais tinham sido realocados para trabalhar na frente de atenção à Covid-19.

A Frente de Apoio Emergencial às Mulheres Vítimas de Violência Doméstica (FREA), surgiu nesse cenário, de mulheres encerradas em casa, não tendo como denunciar ou chegar aos serviços, que estavam em funcionamento parcial e precário. Trata-se de um coletivo feminista multidisciplinar e voluntário, não associado ou identificado com grupos político-partidários, composto por mulheres provenientes de diversos segmentos sociais, idades e vivências que estavam dispostas a contribuir com a atuação dos serviços institucionais existentes de forma reflexiva, crítica e concreta e principalmente mobilizadas pelo desejo de dar assistência e construir cuidado, para tentar dirimir os problemas sociais que estávamos vivenciando.

A FREA possui o compromisso de atuar na garantia de direitos e deseja que as mulheres em situação de violência doméstica do Amapá tenham atendimento, acompanhamento e suporte da rede de forma justa e de qualidade, com objetivo de que, concretamente, a mulher tenha reais condições de se distanciar do ciclo de violência e construir uma história de vida diferente para si.

A atuação da FREA consiste, primeiramente, em estabelecer uma escuta das demandas trazidas pelas mulheres que chegam até nós. O atendimento inicial tem por objetivo dar suporte imediato à mulher que pede ajuda. No primeiro atendimento, nos propormos a estabelecer uma escuta acolhedora, atenta e que possa compreender quais as necessidades mais urgentes da atendida e o que ela precisa, quer fazer e pode fazer naquele momento.

O acolhimento é feito pelos profissionais da psicologia e pode se dar de dois modos: emergencial: que requer ações imediatas; e o não-emergencial: para aquelas que nos procuram para falar de seu sofrimento, mas que não é identificado risco de morte. Não há uma quantidade máxima de atendimentos e nesses casos não-emergenciais podemos dizer que se constrói-se um processo terapêutico. O importante é que a atendida esteja se sentindo emocionalmente mais estável, com as intenções mais claras quanto a própria vida e situação que está vivenciando.

Não há uma obrigatoriedade de conduzir a mulher para denunciar. Entendemos que isso precisa ser uma escolha dela. É evidente que se ela estiver correndo risco de morte todos os esforços necessários precisam ser (e são) empreendidos para que possamos colaborar para a preservação da sua vida. Se ela disser que quer denunciar, tal situação precisa ser informada à coordenação da FREA/AP, que comunicará aos advogados que já saberão da vontade da atendida e são eles que irão realizar todas as atividades legais. O mesmo precisa ser feito com relação às necessidades alimentares e sociais básicas da atendida que são informadas ao serviço social.  Assim, após os atendimentos iniciais, a mulher pode ser: encaminhada para a rede, ou permanecer em atendimento até que possua condições de decidir o que quer fazer diante da violência que está vivenciando.

As atendidas chegam à FREA por meio dos coletivos e organizações comunitárias com as quais temos parceria e também pelos contatos divulgados em nossas redes sociais. Recebemos solicitações de atendimento de vários lugares do nosso Estado e também do país.

Além dos atendimentos individuais nas áreas de serviço social, psicologia e direito, realizamos acompanhamento da mulher para registro de Boletim de Ocorrência; acompanhamento a atendimento na Polícia Técnico-Científica; acompanhamento para início de atendimento no Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), Centro de Referência à Mulher (CRAM) e Centro de Atendimento à Mulher e a Família (CAMUF). Nos propomos ainda ao monitoramento dos encaminhamentos feitos e contato de suporte depois de finalizado o acompanhamento na FREA/AP.

Nosso acompanhamento tem como intenção garantir que a mulher chegue aos serviços do sistema de garantias de direitos disponíveis e que seu atendimento seja de qualidade e resolutivo. Nossa presença junto da mulher pretende lhe proporcionar segurança, apoio e acima de tudo evitar a revitimização, a ocorrência de violência institucional e diminuir a possibilidade de que suas vivências sejam desacreditadas. Encaminhar para a rede é o primeiro passo e isto é feito por vários órgãos e entidades, ocorre que se a mulher estiver sozinha ou se a rede de apoio dela não estiver orientada é muito provável que ela sofra novas violências institucionais e que sua fragilidade aumente e desista de seguir adiante.

Ao longo do desenvolvimento do nosso trabalho conseguimos abrigar mulheres, dar condições para que algumas (em risco grave de morte) pudessem deixar suas casas e ir embora com seus filhos, conseguimos articular serviços em outros Estados para oferecer o suporte que nos foi solicitado, conseguimos ainda colaborar para que muitas recebessem cestas básicas, colaboramos com orientação e apoio de outras que precisavam pensar e refletir melhor sobre seus modos de vida e assim visualizar outros caminhos.

Participamos ainda de ações e reuniões junto a Secretaria de Política para as Mulheres, com órgãos do Judiciário e oportunizamos momentos de reflexão crítica a respeito da violência doméstica contra a mulher no contexto brasileiro em instituições privadas, assim como nas redes sociais por meio de encontros ao vivo com vários órgãos locais. Queremos estar junto e fazer parte da construção e principalmente efetivação das políticas públicas como parte atuante do movimento social.

Tendo em vista as problemáticas que nos deparamos pretendemos ampliar o trabalho e iniciar intervenções grupais e coletivas na comunidade, buscando atuar de forma preventiva. Considerando o compromisso que assumimos que se pauta na defesa dos direitos, na promoção de saúde e na qualidade de vida das mulheres, em especial das periféricas, pretendemos nos aproximar de seus cotidianos e construir espaços de produção de vida comunitários como forma de redução e enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.