Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Cinco anos de Leishmaniose Visceral Humana em Porto Alegre: reflexões sobre o cenário epidemiológico até 2021
Fernanda dos Santos Fernandes, Bruno Egídio Cappelari, Raquel Borba Rosa, Sônia Valladão Thiesen, Juliana Maciel Pinto, Fernando Ritter, Luísa Koetz Spolavori

Última alteração: 2022-02-09

Resumo


A leishmaniose visceral humana (LV) é uma zoonose causada por protozoários do gênero Leishmania, transmitidos ao homem por meio de um vetor, o mosquito-palha, enquanto os cães são os principais reservatórios em áreas urbanas. Trata-se de uma doença com extensa distribuição, presente na África, Ásia, Europa e Américas, onde são registradas as maiores taxas de letalidade do mundo. A LV é considerada uma doença tropical negligenciada (DTN), termo utilizado para uma série de agravos como a hanseníase, a raiva e a dengue, que acometem principalmente populações vulneráveis de países em desenvolvimento e, por isso, não recebem investimentos suficientes para a busca por estratégias de prevenção e tratamento, o que auxilia na manutenção de desigualdades sociais e na perpetuação da pobreza, porque afetam a saúde e a subsistência dos indivíduos. O Brasil registra 90% de todos os casos da América Latina, com destaque para Bahia, Ceará, Maranhão e Minas Gerais, estados com maior número de casos de LV no país. Apesar disto, a doença apresenta urbanização e expansão geográfica no país, ampliando seu status como problema de saúde pública. No Rio Grande do Sul, após confirmações de casos de LV em São Borja (2009), Uruguaiana (2011) e Itaqui (2012) - municípios contíguos no extremo oeste do estado -, Porto Alegre confirmou seu primeiro caso autóctone em 2016, verificando-se, dentre os primeiros casos confirmados no município, uma alta letalidade e a necessidade de treinamento profissional para a suspeição em tempo oportuno. Assim, o objetivo deste trabalho é descrever o cenário de ocorrência de leishmaniose visceral humana em Porto Alegre a partir de 2016, quando ocorreu a detecção do primeiro caso autóctone no município, por meio da análise do banco de dados da leishmaniose visceral humana, extraído do SINAN, em novembro de 2021, e os dados levantados pela equipe de vigilância epidemiológica a partir da investigação dos casos. Durante os cinco anos analisados, foram realizadas 113 notificações de casos suspeitos, com 20 casos autóctones confirmados para LV de pessoas residentes em Porto Alegre. Os anos de 2017 e 2018 apresentaram os maiores números de casos suspeitos - 48 e 33, respectivamente - e 2021 contou com apenas duas notificações até a data analisada, ao passo que 2017 e 2019 tiveram o maior número de casos confirmados - cinco em cada ano. A distribuição de casos suspeitos, confirmados e óbitos segundo sexo é equiparável: os homens representaram 51,3% (n=58) das notificações e 55% (n=11) dos casos novos autóctones confirmados, enquanto três mulheres e dois homens evoluíram à óbito - diferentemente do observado em outros locais do mundo, onde a prevalência da doença em homens é maior. A população negra compôs 39% das notificações de casos suspeitos - menos do que a raça/cor branca, que representou 50% -, mas 60% dos casos confirmados, o que, considerando que Porto Alegre possui 20% de sua população autodeclarada negra, indica diferenças na distribuição da LV segundo raça/cor no município. As faixas etárias mais jovens - até 20 anos, especialmente entre 0 e 9 anos de idade (26,6%) - representam a maior frequência de casos suspeitos, enquanto que os idosos (pessoas acima de 60 anos) representam menos de 15% das notificações, o que corrobora diversos estudos que apontam maior incidência da doença em crianças. A escolaridade mais frequente entre os casos suspeitos foi o ensino fundamental incompleto e apenas um dos casos confirmados tinha ensino médio completo. Houve, ainda, a confirmação da coinfecção LV-HIV de dois indivíduos, um dos quais evoluiu para óbito, o que tem se tornado mais comum nos últimos anos e reforça a importância de abordar a temática junto às equipes de assistência à saúde. Aproximadamente 60% das notificações de casos suspeitos ocorreram em até 30 dias após o surgimento de sintomas, com média de 53 dias e período máximo de até um ano depois do início dos sintomas. No caso dos 5 óbitos, este tempo variou de 37 a 172 dias, ou seja, aproximadamente 6 meses, o que tem sido considerado como o principal motivo pelo qual os primeiros casos de LV no município evoluíram à óbito: a demora para a suspeição e diagnóstico da doença. Apesar disso, todos os 20 casos confirmados tiveram acesso ao tratamento em um período máximo de 10 dias a partir da notificação, sendo que 18 deles iniciaram o tratamento no mesmo dia ou no dia posterior à notificação. Todos os óbitos registrados tiveram a investigação e o tratamento iniciados concomitantemente à notificação, mas o tempo entre início dos sintomas e notificação foi maior do que nos casos confirmados e suspeitos (mediana de 94 dias, variando de 37 a 172 dias), o que reforça a importância da busca pelo serviço de saúde diante do surgimento de sintomas, bem como a necessidade de notificação e investigação adequadas e em tempo oportuno. Destaca-se que 19 dos 20 casos confirmados foram notificados por instituições hospitalares, o que sugere que a suspeição não ocorreu na Atenção Primária à Saúde (APS) e os casos já apresentavam algum grau de agravamento no momento do atendimento que gerou a notificação. Há evidências de falta de informação aos profissionais de saúde no que se refere à LV, o que pode impactar negativamente o diagnóstico e o tratamento - e é possível que este desconhecimento seja ainda mais relevante em um contexto como o de Porto Alegre, onde não há um número de casos expressivos da doença e que, pela gama de sintomas facilmente confundíveis com outros agravos, não se suspeite de LV. Também é importante ressaltar que 19 dos 20 casos autóctones confirmados ocorreram em moradores de ocupações irregulares em encostas de morros, com moradias muito próximas à região de mata e sem saneamento básico, o que destaca o caráter de ‘doença negligenciada’ da LV. A doença se mantém como um problema de saúde pública no Brasil, afetando principalmente as populações marginalizadas e que vivem em contextos de vulnerabilidade. Por isso, o enfrentamento à LV, que tem o potencial de se expandir para outras áreas de risco em Porto Alegre, necessita de atuação intersetorial, que entenda o processo de adoecimento dos indivíduos a partir da perspectiva da Saúde Única, em que é preciso um meio ambiente saudável - incluindo a saúde animal - para que as ações de controle e mitigação da LV garantam a redução da morbimortalidade, o acesso ao diagnóstico e tratamento oportunos, o fomento às ações de promoção, comunicação e educação em saúde - especialmente no que tange à educação permanente dos profissionais da APS -, além da avaliação e fortalecimento do sistema de vigilância da doença no município, de forma a evitar novos óbitos por uma doença que possui tratamento e conter a expansão geográfica e o aumento da sua incidência nas áreas com transmissão confirmada. Além disso, é necessário reafirmar a importância da busca ativa e da orientação aos pacientes suspeitos e confirmados e o controle de vetores e hospedeiros, realizados pelos profissionais da vigilância em saúde e da APS, fomentando a atuação colaborativa entre as áreas e aumentando a sensibilidade da vigilância da LV.