Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Cuidar para emancipar: pesquisa-ação sobre experiências de cuidado das mulheres vítimas de violência de um bairro periférico de Santana/AP
Eliany Nazaré Rodrigues Rodrigues, Márcio Mariath Belloc

Última alteração: 2022-01-28

Resumo


Este trabalho apresenta uma pesquisa de mestrado em psicologia em curso, junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. Trata-se de uma pesquisa-ação participativa com mulheres vítimas de violência doméstica de um dos bairros mais vulneráveis de Santana/Amapá. Parte de um trabalho realizado junto ao Juizado de Violência Doméstica, da comarca correspondente, e objetiva conhecer as barreiras de acesso tanto das instituições quanto do contexto de vulnerabilidade e violência enfrentado; conhecer e analisar as possíveis experiências dessas mulheres para enfrentar a violência; bem como construir coletivamente estratégias institucionais intersetoriais e comunitárias de proteção e cuidado.

A Justiça faz parte da rede de atendimento à violência doméstica contra a mulher e em conjunto com outros órgãos e setores, tais como: assistência, segurança pública e saúde, tem a função de promover ações com objetivo de ampliar e melhorar a qualidade do atendimento, a identificação e o encaminhamento das mulheres em situação de violência, assim como contribuir para a integralidade e humanização do atendimento prestado.

Para cumprir o seu papel, esse Juizado realiza ações além das processuais, que visam oferecer um melhor cumprimento das medidas protetivas, dando suporte e acompanhamento à mulher, e também ao agressor, assim como aos filhos e familiares que necessitarem e estiverem envolvidos no conflito, tendo como meta a diminuição de reincidências. Desta forma, ocorrem atividades grupais direcionadas para homens e mulheres, ações com os parceiros da rede, entre outros.

Apesar dos objetivos serem positivos e alcançarem certos resultados, percebo que ainda não se consegue alcançar as mulheres em suas reais demandas e necessidades, pois elas se deparam com uma série de dificuldades e problemas para estar presente nesses momentos de grupo e em outras atividades que frequentemente as afastam das intervenções propostas. Dificuldades estas que podem ser desde não ter apoio e com quem deixar seus filhos, não ter dinheiro para transporte, residir em locais distantes e de difícil acesso, já que não são contemplados pelas linhas de transporte público, até as barreiras burocráticas institucionais ou mesmo as leis territoriais de um bairro comandado pelo comércio ilegal de drogas ilegais, ambas atravessadas, a sua maneira, pelo modelo societário patriarcal.

Dentro desse contexto o que é agravante é que suas ausências diante de tais intervenções, que compõem o bojo do processo judicial, são avaliadas, muitas vezes, como desistência, como a confirmação de que não querem ajuda e identifica-se que essa é uma compreensão que está em toda a rede de atendimento. O contexto social e de vida de uma parcela considerável das mulheres que estão recebendo algum nível de ação da rede de atendimento frequentemente não é considerado.

Um outro lado da questão que tenho pensado e vivenciado no atendimento das mulheres, ultimamente, diz respeito as situações em que elas recebem o devido acolhimento jurídico e de proteção conforme a legislação específica, mas que pode ter como desdobramento também a revitimização. Como exemplo, trago o caso da colocação das tornozeleiras eletrônicas, que são geralmente determinadas pelo judiciário em processos recorrentes, nos quais ocorreram descumprimento grave de medida protetiva e que, o advento da pandemia de SARS-CoV-2, propiciou a maior ocorrência de tais determinações.

Venho percebendo que frequentemente as mulheres após terem conhecimento de que seus companheiros ou ex-companheiros, estão em monitoramento eletrônico recorrem ao judiciário para que o ato seja desfeito. Assim, uma ação de proteção traz consequências difíceis de lidar, pois elas se veem sendo pressionadas por esses homens ou familiares deles dizendo que não podem ir trabalhar porque estão sentindo vergonha do aparelho instalado na perna, porque estão sendo vistos como criminosos (como se violência doméstica não fosse crime), porque podem ficar desempregados, já que não estão indo ao trabalho e por isso não conseguirão pagar a pensão aos filhos, que na maioria das vezes nunca pagaram.

As mulheres vítimas de violência estão a todo momento entre duas dimensões: cuidar e violentar. Acostumadas a não serem cuidadas ou protegidas, quando são, se deparam com outros modos de violência que as fazem querer abrir mão da proteção para terem a possibilidade de manter o mínimo para subsistência. No entanto, não podemos esquecer que isso só ocorre, pois o suporte das políticas públicas intersetoriais, que deveria ser oportunizado, é falho ou pela inexistência ou precariedade da rede de apoio, proteção e assistência.

Quando falamos em apoio e cuidado para mulheres em situação de violência de gênero em âmbito doméstico vemos que podem se estender para vários ramos da vida humana.  Assim, podemos visualizar que existem várias formas de cuidado: o social, o jurídico, educacional, o existente nas relações afetivas, os que se referem aos cuidados em saúde integral, biopsicossocial, entre outros.

E o que vem ser o cuidado? Primeiramente, não é apenas uma mera execução de tarefas, cumprimento de leis e orientações que possam ser dadas por um profissional especializado. O cuidado vem ser o modo como uma pessoa pode se estruturar e se realizar no mundo com as outras pessoas, no qual estão presentes uma consideração afetiva e um sentimento de responsabilização.

O cuidado, nesse sentido é um princípio ético, estético e político, que uma instituição atuando isoladamente nunca conseguirá integralizar. Ainda mais se esse cuidado for construído alhures à realidade das pessoas. No caso das mulheres vítimas de violência doméstica não é diferente. Assim, a presença delas, a escuta de suas demandas é um componente importante nesse processo.

A dimensão do cuidado não está integralmente presente no sistema de garantia de direitos à mulher vítima de violência doméstica, tampouco nos Sistemas Únicos da Assistência e da Saúde isoladamente. Ao termos a compreensão das várias frentes que precisam ser disponibilizadas para que elas possam ser cuidadas, vemos que a articulação entre os órgãos e setores da rede precisa ser constante, que o diálogo deveria ser frequente e próximo. Neste sentido, é necessário buscar construir coletiva e intersetorialmente estratégias de cuidado, que partam das realidades singulares das mulheres afetadas, assim como as de seus territórios, articulando experiências e redes institucionais e comunitárias. Produzir um comum com aquilo de mais singular de cada integrante, para construir linhas e possibilidades de emancipação.