Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Tensões entre o tradicional e o contemporâneo: problematizações sobre o comum, a memória e a ancestralidade
Daniel Emilio da Silva Almeida, Tiago Lopes Coelho, Daniela Coelho Ricardo

Última alteração: 2022-02-23

Resumo


Apresentação:“O futuro é ancestral”. Ailton KrenakUm pai oferece ao filho o final do suco de uva de um recipiente. O filho, ainda muito novo, sente cristais que se depositaram no fundo da garrafa e protesta: “O suco está ruim pai”!O  pai percebe a situação e abre um novo suco para ofertar ao filho. Logo, a criança de poucos anos, comenta; “O velho é ruim!”.O pai, reparando algo por trás do diálogo, comenta: “Não é porque é velho que é ruim meu filho. Nesse caso, isso só ocorreu por causa dos sedimentos do suco. Tem muitas coisas que se tornam ainda melhores com o tempo, como o vinho". O seguinte trabalho é baseado na experiência do processo de transição de uma família. Ao integrarem-se com o movimento de êxodo urbano, este grupo familiar compartilha, com algumas de suas conexões existenciais, como amigos, vivências que nos ajudam a problematizar processos desafiadores para a contemporaneidade. Com o caminhar desta família, questões sobre o que é saúde, cuidado, felicidade, natureza e comunidade nos são apresentadas a todos momentos.Tratamos especialmente sobre o desafio de constituir formas de viver que produzam resistências cada vez mais produtivas aos modos de vida marcados pela serialização capitalística. Formas atualizadas de constituição  do comum, em seus aspectos singulares e comunitários, considerando as diversas tradições e ancestralidades como riquezas com a potência de impulsionar processos outros que apresentam implicações que vão além de dimensões organizacionais, econômicas, jurídicas, afetivas ou espirituais. A produção se baseia em uma abordagem cartográfica., Desenvolvimento do trabalho: Uma comunidade do interior de Minas. A experiência do trabalho passa por uma família e amigos com o intuito de vivenciar novas-velhas formas de viver. A proposta da construção de uma casa de barro. A ideia de plantar o alimento em meio a floresta: agricultura sintrópica, conceito relativamente novo, entretanto, imerso nas ressonâncias de passados indígenas.A proposta da construção da casa de barro gera estranheza na comunidade… E ao mesmo tempo desperta suas memórias. Lembranças de um passado que aciona um gosto doce, mas também de amarga escassez e pobreza. Mas como iniciar a construção? As leituras e pesquisas na internet fortalecem a convicção de que é possível construir com a terra. Mas apenas isso é insuficiente para superar inseguranças e incertezas que os desafios da autoconstrução, com terra, apresentam. É preciso saltar das leituras para conhecer o barro com o corpo. Buscar o conhecimento abandonado pela comunidade é a trilha… A estranheza vai dando espaço a bons encontros com o passado, em um misto de incompreensão pelo resgate do velho (visto como algo a ser abandonado e arcaico) e de felicidade pelo acesso a sua ancestralidade.O dia foi marcado. Uma gama de pessoas da comunidade, construtores não de ofício, mas de corpo e de história, de sessenta a setenta anos surgiram, como que vivendo sua infância. Um grande patriarca da comunidade, de noventa e seis anos, pede a sua família para estar presente, vendo tudo de dentro do carro, construindo a casa nos dias de hoje e em suas memórias. Reviver os processo de autoconstrução puxa outras histórias… Sobre as estratégias das raizeiras, que tratavam as verminoses das crianças adicionando sementes aos bolos. Lembranças ancestrais e espirituais de cuidado de si tradicionais, e que consideram outras materialidades da vida, também surgem, como o benzimento. Os relatos e histórias terminam em um ecoar seco: a raizeira e o benzedor de maiores proeminências na comunidade faleceram… Não existem referências para suas práticas na comunidade. O tratamento e profilaxia das verminoses, ou as doenças da alma, agora são cuidadas quase que exclusivamente no centro de saúde, com pílulas, prescritas por alguém de fora, que visita a região uma vez por semana.A família e seus amigos seguem no esforço do processo de (bio)construir-se, marcados pela tentativa de recuperar uma certa tradição de vivência coletiva da região. O movimento é considerado como de significado comunitário, de constituição e reconhecimento de ancestralidades e pertencimentos. Ganhou corpo, memórias, contribuições.
Resultados e/ou impactos: Vivemos a experiência de observar que cultura e tradição se (re)-inventam, são vivas, e se reconstituem, mesmos em territórios de aparente decaimento de histórias e ancestralidades. Com este (re)encontro, novas-antigas formas de se conectar com a terra, comunidade, saúde, ambiente, ganham novos-velhos matizes. O resgate de “velhas” formas de viver, fadadas ao passado, se reconstituem com vivacidade impressionante. Conhecimentos tradicionais, ancestrais, se misturam com os atuais, muito persiste e muito se atualiza.A reestruturação e resgate-criação de formas de se constituir um sentido público/ comunitário, repensando a articulação do privado com o interesse coletivo, se mostraram de grande riqueza, resgatando histórias, e reinventando-resgatando formas de se portar e produzir vidas, reacendendo memórias que pareciam ter se extinguido. Tal situação nos provoca a pensarmos até que ponto “novas” formas de se levar e reconhecer o mundo, quanto ao cuidado de si e dos outros não desconsideram certas formas do tradicional. Neste sentido, romper com a tradicional vida urbana, e reconhecer o mundo para além do capital, abre espaço para ressignificar o cuidado de si e do outro, valorizando os saberes ancestrais e a conexão com a natureza, reforçando a máxima que somos parte desta, não apenas nos servimos dela. Frente a tal dinâmica, certas questões surgem a nós: O cuidado em saúde em qualquer território deveria se dar a partir de modelos gerais e pré-concebidos? Quais seriam as possibilidades de pensar formatos mais abertos, capazes de integrar os processos de produção de saúde e de vidas construídos de forma comunitária e tradicional? Seria possível e desejável um maior esforço de integração com a chegada do novo, garantindo modos de articulação mais potentes com toda a trajetória ancestral e promovendo ciclos de renovação mais respeitosos? Nesse sentido, parece-nos importante uma reflexão sobre os processos de apagamento dos sentimentos e das memórias vinculadas a certas ideias de comum, relacionadas com perspectivas de cunho mais local e tradicional. Parece-nos que há uma certa ligação entre os processos de estruturação de modelos gerais de cuidado, muitas vezes calcados em formas de produção de conhecimento coloniais e que se pretendem totais, com a prevalência de perspectivas de vida que desvalorizam experiências comunitárias. Acreditamos que com as experiências comunitárias há maiores condições de promover a constituição de zonas de confluência e aprendizados mútuos, produzindo processos subjetivos mais ricos e mitigando formas de operar nas quais certas tradições, usualmente de cunho europeísta e branco, se coloquem como pretensas verdades absolutas. Considerações finais;Observamos que é de grande importância para o tecido comunitário o reconhecimento da riqueza de suas raízes, a base de seus aprendizados, e que isto tudo não é entrave ao novo de qualquer maneira… Mas sim, e com a persistência necessária, aduba e prepara a terra, e serve de base para a construção de futuros nos quais as comunidades possam se tornar mais autônomas, felizes e menos dependentes.Tal ideia subverte o fluxo da riqueza, que passa a ser reconhecida não como algo que estritamente vem de fora em papel moeda, mas como algo que brota da própria comunidade, como água de nascente, e que o futuro não deixa de estar nas mãos de todos, nas mais diversas territorialidades e das riquezas de suas ancestralidades.