Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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(COM)PARTILHANDO O CUIDADO: Relato de Experiência de estágio em um CAPS III no Rio de Janeiro - RJ.
Gabriela Fernandes Castro

Última alteração: 2022-01-26

Resumo


Apresentação:

O presente trabalho tem como finalidade realizar um relato de experiência, tendo como base os princípios ético-políticos desenvolvidos a partir da luta antimanicomial. Partindo de uma experiência de estágio de psicologia, realizado no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro; busca-se analisar, a partir dos encontros e reflexões suscitadas, tanto os desafios apresentados para o cuidado compartilhado em meio à pandemia de Covid-19, como também as práticas de trabalho e direcionamentos desenvolvidos durante esse período. Nesse sentido, parte-se das inquietudes e discussões produzidas no campo, como também de uma revisão da literatura, para discutir sobre o cuidado compartilhado, sem a pretensão de produzir uma verdade única sobre este, mas, do contrário, na esperança de que estas reflexões possam contribuir para os debates sobre a coletivização do cuidar, possivelmente iluminando outros caminhos possíveis para a ampliação da corresponsabilização do usuário e de sua maior inserção nos espaços abertos da cidade.


Desenvolvimento:


A experiência de estágio que serve de base para a escrita deste trabalho ocorreu entre outubro de 2020 e junho de 2021. No momento inicial do estágio, encontrávamo-nos no meio de uma pandemia, que já passava da previsão de durar alguns meses e começava a se estender para além do previsto e sem uma perspectiva de retomada das atividades presenciais. Apesar do Centro de Atenção Psicossocial, no qual estagiei,  localizar-se em uma região considerada periférica, onde os efeitos do isolamento possuem outras matizes - com uma grande parte da população local tendo que continuar a sair e trabalhar, devido o caráter intenso da informalidade e a necessidade de manter a “comida na mesa” - a impossibilidade de poder estar em coletivo também teve efeitos imensuráveis nos casos acompanhados durante o período. Algumas mudanças tiveram de ser incorporadas, culminando também na suspensão da grande maioria das oficinas, assembleias, reuniões e outras atividades presenciais. Também foi possível observar um aumento do número de internações e acolhimentos, caracterizando um adoecimento que se alastrou de forma generalizada no tecido social. Nesse sentido, foi a escolha deste trabalho partir dos encontros, de sua ferida aberta e das reflexões suscitadas, na tentativa de produzir uma discussão que se pautasse nas trocas vivenciadas, mas que resgatasse sempre as potências do coletivo, do “fractal” (todo).


A partir da análise de quatro casos estudados busca-se responder a pergunta: Como promover uma coletivização do cuidado, partindo do paradigma da atenção psicossocial, junto ao imperativo do isolamento social em um contexto de pandemia?


Os casos utilizados mantiveram-se em anonimato ao longo de todo estudo e foram selecionados a partir dos obstáculos frente às diferentes instâncias do cuidado compartilhado, como também das pactuações que foram produzidas. Nesse contexto, trata-se não apenas de abordar a corresponsabilização do usuário dentro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mas também em outras esferas, com enfoque na esfera familiar e a do território.


Resultados


Através da análise dos casos acompanhados pode-se perceber que os desafios para a efetivação de um cuidado compartilhado não se originam na pandemia, mas a partir dela se evidenciaram de forma mais escancarada. O imperativo do isolamento impossibilitou a multiplicidade de formas de estar junto presencialmente e de ocupar as ruas e espaços da cidade, podendo evocar práticas de saúde que se encerrem nos muros institucionais e em um cuidado que se faça de forma protocolar e ambulatorial.


Tratando-se dos obstáculos e facilitadores sobre um “cuidar junto” dentro da clínica ampliada, foi evidente que o Centro de Atenção Psicossocial configurou, na perspectiva dos usuários relatados na experiência, um local em que se sentem pertencentes e, em certa medida, felizes. Os vínculos vivos, observados no cotidiano de trabalho, materializados nas trocas entre usuários e profissionais e entre usuários com usuários, caracterizaram um marco de conquista do princípio de humanização do cuidado, proposto pela reforma psiquiátrica.


No entanto, o “lado b", ou contraponto, deste vínculo, observado nos casos acompanhados, é a tentativa de manutenção do usuário na unidade, seja por esforço da família ou dele mesmo, uma vez que, segundo relatos observados no estudo, diferentemente da cidade, dentro do CAPS o usuário “fica bem”. O desafio da clínica ampliada, nesse sentido,  encontra-se na criação de laços que vão além daqueles com a unidade, sendo o papel do CAPS buscar o fortalecimento de relações com outras redes, como a familiar e a territorial, na tentativa também de produzir um impacto sobre o lugar social da loucura.


Ao tratar destas outras redes, o estudo subdivide-se, então, em três segmentos, fazendo uso dos outros três encontros produzidos com os casos acompanhados: 1) “Desembaraçando nós: rede de apoio familiar” - que aborda os obstáculos e esforços no compartilhamento do cuidado com as famílias; 2) “Tecendo redes e desatando novos nós: cuidado colaborativo” - no qual trata-se do estabelecimento de redes de cuidado colaborativo junto à Atenção Primária; e 3) Aprendendo a costurar no campo: a vida no território, no qual se discute o dispositivo da visita domiciliar e do conhecer o território do usuário junto à ele como um potencializador da construção ou do fortalecimento de laços com este território.


Considerações finais:

Ao longo do trabalho, refletiu-se sobre algumas dificuldades no partilhar o cuidado com o usuário, como também iniciativas simples e valiosas para fortalecer e explorar os vínculos com outras instâncias: familiares, atenção básica e território. Os encontros em questão puderam configurar não uma melhora definitiva, indo na contramão de um olhar linear sobre o processo saúde-doença, mas mudanças importantes tanto nos quadro clínicos quanto no alargamento de acesso a direitos e instrumentos fundamentais para a vida em sociedade.

O momento presente fez com que tivéssemos que despertar novas formas de “aprender fazendo”, impondo novas barreiras e reduzindo as possibilidades de cuidar de forma coletiva presencialmente. Contudo, é importante atentar-nós que reinventar práticas e “aprender fazendo” constitui uma das principais diretrizes da reforma psiquiátrica. Isso pode ser observado no cotidiano de trabalho, no qual, enquanto desconstruímos dispositivos e práticas manicomiais, inventamos novas formas de trabalhar e existir em saúde mental. Ao partirmos das limitações econômicas, históricas e ideológicas, buscamos fazer pequenas revoluções diárias, partindo de micropolíticas e “cuidando junto”, para tecer novos possíveis. De outro modo, produzir saúde a partir de um trabalho vivo, é fazer a mudança no cotidiano, e também é ousar acreditar que outro mundo é possível.

Com efeito, se as questões de saúde são complexas, o trabalho em rede permite somar toda multiplicidade de esforços na tentativa de produzir respostas que visem o princípio da integralidade em saúde. Por conseguinte, é apenas partindo dos territórios, reais e subjetivos, que podemos promover a criação e o fortalecimento dos laços sociais, ampliando as trocas e partindo de uma corresponsabilização do cuidado, que vai além das instituições e profissionais de saúde, adentrando todas as redes de afeto.