Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Por uma Psicologia Encantada: cartografias de fissuras em uma graduação em saúde
Victória Benfica Marra Pasqual, Rayane Stephany dos Santos Magalhães, Thiago Benedito Livramento Melicio

Última alteração: 2022-01-25

Resumo


Buscando apresentar este trabalho com as múltiplas mãos que seguram as nossas enquanto escrevemos, convidamos os leitores para comporem conosco uma utopia de vida ao delirar em coletivo uma Psicologia Encantada. Consideramos os atravessamentos dos contextos sociocultural e político do Rio de Janeiro e partimos das nossas experiências nos projetos de estágio, pesquisa e extensão do Instituto de Psicologia da UFRJ  “Saúde Mental na Periferia: Como Vamos?” e “Coletivo Convivências”. Tais atividades nos deram pistas para pensar a formação em saúde, a atenção psicossocial e os seus territórios existenciais.

O trabalho busca discutir como ações formativas podem sustentar saberes encantados, como dizem Simas e Rufino, que afirmam a vida e se opõem à morte que nos é imposta. Em uma graduação de psicologia, historicamente elitista e com heranças normatizadoras, encontramos fissuras em projetos que apostam na pluralidade dos modos de ser e estar no mundo. Habitando territórios existenciais, com a Cartografia proposta por Deleuze e Guattari, buscamos caminhar entre brechas e observar fluxos potencializadores de vida. Compomos, junto à  rede de Atenção Psicossocial, partindo do entendimento de que a saúde só se faz em coletivo, em constante reinvenção e politicamente implicada.

Em março de 2020, o  Brasil foi atingido pela pandemia de COVID-19 e, apesar da contaminação em escala global, o impacto do vírus não é homogêneo e evidencia as desigualdades enraizadas no país. Partimos do Rio de Janeiro, em uma cartografia buscamos acompanhar os processos e mapear as relações de poder transversalizadas pela violência proveniente das ações do Estado, das milícias e do tráfico. Portanto, destacar esses analisadores é essencial para pensarmos o processo formativo das estudantes da saúde.

Ao situarmos onde nossos pés pisam, questionamos quem pode ficar em casa em uma pandemia? A casa sempre é um lugar de proteção? Todos têm casa? No Projeto de Brasil colonizado, fundado na concentração de renda, no racismo, na misoginia e na exploração dos corpos e da terra, nenhuma dessas perguntas são respondidas de forma simplificada. Em plena pandemia, as operações policiais continuam movimentando as engrenagens do extermínio em massa de pessoas pretas e pobres, a classe trabalhadora continua sendo explorada, falta saneamento básico em diversas favelas e mulheres vítimas de violência doméstica precisaram conviver mais assiduamente com seus agressores. Ao percebermos que esse projeto de Brasil se mostra inviável, torna-se urgente a territorialização de novos mundos encantados.

Este trabalho intenta cartografar possíveis modos de exercer a prática psi. À luz do encantamento e desencantamento das formas de vida,  acreditamos na inventividade cotidiana que contrapõe a perversidade rotineira neste país. É percebendo onde surge vida em meio a tanta mortandade, que potencializamos, na prática, a nossa formação em saúde, compondo os projetos “Saúde Mental na Periferia: Como Vamos?” e “Coletivo Convivências”.

O projeto “Saúde Mental na Periferia: Como Vamos?”, desenvolvido pela "Agência de Notícias das Favelas” em parceria com a UFRJ, atende à chamada da FIOCRUZ para atuar em ações emergenciais de enfrentamento à COVID-19 nas favelas do Rio de Janeiro. Composto por psicólogas, assistentes sociais, agentes de território e estudantes de psicologia, o estágio oferece atendimento psicossocial gratuito para mulheres moradoras das favelas da Providência, Prazeres e Jacarezinho, entendendo que esses corpos passaram a estar ainda mais vulneráveis às violências de gênero nesse período. Se articulando como um ponto da rede intersetorial, o projeto busca superar a fragmentação do saber-fazer em saúde e aposta em uma atuação interprofissional e transdisciplinar, realizando ações de educação permanente e supervisões clínico-institucionais em grupo. Com base nas tecnologias leves, conforme pensada por Merhy, compreendendo os determinantes e complexidades que interferem no processo saúde-doença, nossa atuação é territorializada e se dá através do vínculo, acolhimento e corresponsabilização. Ou seja, envolvem a construção de um Projeto Terapêutico Singular em movimento, como uma ferramenta que pode ser reinventada a cada caso, trabalhando a autonomia, ampliando e fortalecendo as redes das mulheres atendidas. Ao romper com o clássico “setting do divã” e atuar nas periferias, dando espaço seguro para que as mulheres falem de seus afetos, se apropriem de si e de seus desejos, o projeto produz rupturas na hegemonia e constrange as linhas de forças que operam no silenciamento destes corpos.

Outro espaço em que cartografamos fissuras é o Coletivo Convivências, um projeto que, em uma perspectiva antimanicomial, articula arte e redes de afeto através da convivência, atuando com serviços de saúde, sobretudo os Centros de Convivência e Cultura (CECOs). Na  pandemia, uma parceria fundamental para o fortalecimento dos vínculos interrompidos pelo isolamento social foi com o CECO Virtual. Esse espaço coletivo foi financiado pelo Edital Inova COVID-19 da FIOCRUZ. O ambiente virtual de convivência se mostrou um lugar de trocas e interações, promoção de saúde, acolhimento, afirmação de cidadania e inclusão digital. Por meio da Agenda COMviver, a plataforma reúne diversas atividades onlines conduzidas pelos serviços de saúde e por outros projetos.

Em coletivo, construímos a oficina “Próxima Parada Central 22, Delirando Territórios”, tendo como dispositivo a criação  conjunta de outros territórios existenciais. Poderia ser uma cidade, um país, um mundo, o que quiséssemos. Realizamos dois ciclos de oficina, o primeiro em uma clínica da família da zona norte. Em parceria com profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde da Família, chegaram até nós usuárias do serviço que nos encontravam semanalmente em reuniões online. Naquelas tardes de sexta-feira, todos nos tornamos conviventes, em um processo que culminou na construção de um território comum. Os sonhos começaram tímidos, era como se nem todo mundo estivesse acostumado a delirar. Fomos entrando de corpo, nos alongando e os sonhos deslancharam. A partir das atividades, observamos que a cartografia se apresentava agenciando infinitos carnavais, roça com mar, festas com amigos e família, comida, cerveja gelada e muita felicidade.

O segundo ciclo de oficinas foi em um CAPSad do Subúrbio Carioca. Nesse território a experiência foi diferente, pois fizemos a oficina em um modelo híbrido, em que nós estávamos no online e os usuários no serviço presencial. Em uma conversa sobre os sonhos, nos confrontamos com relatos que ressaltaram as situações de desigualdades e vulnerabilidades vividas por pessoas em situação de rua e usuários de álcool e outras drogas. Ao convidarmos uma convivente ao delírio, ela nos disse “sonhar vai valer a pena? Eu já sonhei demais”.

Por apostarmos em uma psicologia encantada, percebemos que aquela jovem usuária, que esboçava não conseguir sonhar, reverberava no encontro os desejos e sonhos de transformar sua realidade. Nos comprometemos em capturar outras expressões, para além do sofrimento, em criar inéditos viáveis - aquilo que ainda não foi ensaiado, mas que pode, pela articulação coletiva, vir a ser  realidade (Freire). Em movimento constante, defendemos o direito ao delírio, ao sonho, à vida digna, com comida e esperança.

O encontro com a rede de atenção psicossocial nos proporcionou processos de rupturas importantes em nossa graduação, e, ao compormos equipes multiprofissionais, percebemos que a partir da perspectiva do encanto podemos construir linhas de fuga para uma saúde que potencialize a vida múltipla.  Reforçamos que a psicologia é uma graduação em saúde, e o contato com o SUS na formação de psicólogas é fundamental para o compromisso social que a psicologia assume. Nosso delírio, uma psicologia encantada, caminha rumo a uma utopia possível por ser construída coletivamente, com estudantes e profissionais.