Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Tomada de decisão compartilhada em farmacoterapia: um longo caminho a percorrer
Kirla Barbosa Detoni, Simone de Araújo Medina Mendonça, Djenane Ramalho-de-Oliveira

Última alteração: 2022-01-21

Resumo


Apresentação:

A definição de tomada de decisão compartilhada presupõem que profissionais de saúde e pacientes colaborem, que a melhor evidência possível seja compartilhada e que as preferências informadas do paciente sejam respeitadas e colocadas como prioridade. O profissional deve decidir junto com o paciente, e não por ele. Assim, após apresentar de maneira detalhada as alternativas terapêuticas, o profissional deve ajudar o paciente a explorá-las para formar sua própria preferência, para assim decidirem, juntos, a melhor opção, tendo como foco a autonomia no processo decisório. A tomada de decisão compartilhada é considerada, portanto, o pilar do cuidado centrado na pessoa. Apesar disso, o cuidado ao paciente ainda é pautado pela lógica paternalista e pelo modelo biomédico, em que a assimetria de poder reforça a assimetria dialógica na relação terapêutica.

Meu objetivo com esse trabalho foi apresentar minhas primeiras reflexões, ainda em processo de desenvolvimento, sobre a relação profissional-paciente no processo de tomada de decisão em farmacoterapia, partindo do conhecimento sobre as relações de poder existentes nesta área. Também tive como objetivo refletir sobre a importância da formação crítica de futuros profissionais de saúde para o efetivo cuidado centrado na pessoa.

Desenvolvimento do trabalho:

Trata-se de uma autoetnografia crítica sob a ótica de uma farmacêutica-pesquisadora-docente, em constante formação e transformação, refletindo sobre a relação profissional-paciente no processo de tomada de decisão em farmacoterapia. Utilizei como lente teórica a “Pedagogia do Oprimido”. A autoetnografia é uma metologia qualitativa que busca descrever e analisar de forma sistemática (grafia) as experiências pessoais (auto) para compreender determinado aspecto cultural, social e político (etno). Os dados foram extraídos das minhas anotações em diário de campo, valendo-me continuamente da prática reflexiva. Nele descrevi minhas vivências, resgatando memórias enquanto farmacêutica atuando no cuidado às pessoas. Os dados emergentes foram discutidos com outra farmacêutica e pesquisadora, de forma colaborativa, proporcionando novas reflexões acerca da educação crítica de futuros profissionais de saúde para o efetivo cuidado centrado na pessoa. Tais reflexões também foram objeto de coleta. Os resultados foram descritos na forma de narrativa.

Resultados e/ou impactos:

- Logo após minha formação em Farmácia, atuei como voluntária em uma Liga Acadêmica de assistência a pacientes com diabetes melito. Recém-formada, cheia de expectativas e com sede de aprendizado, tinha nos supervisores a fonte de inspiração profissional. Lembro-me de um paciente, de alguns na verdade, mas este me marcou particularmente por ser o primeiro paciente que acompanhei junto à equipe. Em uma das consultas de retorno, o paciente apresentou os exames laboratoriais realizados no mês anterior. Lembro que ao analisar os resultados, a primeira coisa que a profissional disse ao paciente foi: “Você não está usando os remédios corretamente. Tem um exame aqui que está denunciando você. Por isso, não tente me enganar. Desse jeito, você vai perder o rim ou a visão”. Segundo ela, apesar do resultado satisfatório de glicemia de jejum, a hemoglobina glicada elevada indicava que o paciente aderia às prescrições e à dieta somente na véspera de realização do exame, mas que durante os últimos três meses não foi essa a realidade. À época, como uma clínica ainda inexperiente, achei incrível ela estabelecer essa conexão. Eu, cheia de informações bem adquiridas durante minha formação, iniciei minha verborreia sobre as consequências da não adesão e reforcei as instruções da prescrição. O paciente, envergonhado e constrangido, não pronunciou uma palavra sequer frente à nossa atitude policial. Na consulta individual, logo em seguida, conversei com o paciente sobre seus motivos para não adesão e ele me disse que estava tendo muita diarreia com o medicamento. “Vamos mudar então para outra formulação, que não causa esta reação. Vou solicitar à médica para fazer a troca. Tudo bem?”. - “Sim”.

Nesta relação, o paciente não é sujeito de sua própria saúde, mas sim objeto de saúde de outrem, e sua preocupação em melhorar os resultados dos exames não é, de fato, por seu benefício próprio, mas para atender às expectativas dos profissionais. Os profissionais, na posição paternalista, são temidos pelos usuários e vigiam de perto suas ações. É importante destacar, também, que a escuta ativa e o respeito à subjetividade do ser humano são aspectos crucias para o cuidado centrado na pessoa, mas essas atitudes podem mascarar o papel paternalista do profissional de saúde na relação terapêutica. Ou seja, escutar o paciente não significa, necessariamente, reconhecer o paciente como sujeito ativo e capaz de tomar decisões concretas sobre questões relativas à sua própria saúde. Escutar e respeitar o paciente não significa sempre que haverá compartilhamento da decisão. Muitas vezes, os profissionais de saúde valem-se da subjetividade do paciente para adequar a farmacoterapia conforme os medos e anseios dos usuários. Contudo, a escolha - feita considerando, de fato, os discursos do paciente - continua sendo do profissional. O usuário continua assumindo um papel passivo e paciente em relação ao seu tratamento, mantido pela relação de poder velada.

- Hoje, me deparo com meu interesse de pesquisa: tomada de decisão compartilhada em farmacoterapia. E, revivendo minhas experiências passadas enquanto farmacêutica clínica, reflito sobre a ironia das minhas atitudes. Ironia esta escancarada em meu desejo em me tornar um dia professora: como trocar experiências com os alunos reproduzindo o paternalismo da educação bancária?

A educação bancária, assim como o modelo biomédico, ratifica as opressões existentes e não abre espaço para o diálogo, para a consciência crítica e para a reflexividade. Nesta prática educacional monológica, o educador é o único detentor do saber e deposita o conhecimento nos alunos que, por sua vez, devem receber docilmente os depósitos de “verdade absoluta”.  Essa lógica de hierarquia opressora do saber é reproduzida, tempos depois, por esses mesmos alunos enquanto profissionais de saúde no cuidado ao paciente. A forma de produção e reprodução da saúde é impactada pela forma como se ensina a saúde. Dessa forma, é de extrema importância ofertar experiências educacionais críticas e libertadoras a futuros profissionais que busquem a reflexão sobre essas questões, colocando o paciente de fato no centro do cuidado.

Considerações finais:

A tomada de decisão compartilhada deve ser o foco dos profissionais de saúde, na busca por um cuidado centrado na pessoa que respeite a autonomia, a individualidade e as opiniões dos sujeitos. É preciso, portanto, reconhecer as relações de poder existentes na saúde e refletir criticamente sobre as atitudes frente ao paciente-sujeito, para que se possa então buscar novas formas de produzir saúde de forma autônoma e responsável. A tomada de decisão compartilhada, portanto, deve ser foco do ensino-aprendizado, oferecendo aos alunos a mesma pedagogia libertadora que espera-se que eles, enquanto profissionais de saúde no futuro, ofereçam ao paciente.