Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Quando medicalizar a dor simboliza o fim da vida – “Reflexões paliativas e aprendizados cuidados”
Veronica Garcia Tavares, Nilcéia Nascimento de Figueiredo

Última alteração: 2022-01-24

Resumo


Essa é uma escrevivência, conceito cunhado pela escritora negra Conceição Evaristo, sobre desejos e perspectivas de quem espera no cuidado em saúde, alívio para lidar com a finitude da vida.

Enquanto estudávamos em tempos diversos na mesma Universidade, no mesmo curso, estávamos longe de pensar que em boa parte da nossa futura profissão, iríamos nos encontrar para ajudar curar a dor da morte anunciada.

Fisioterapeutas que somos, grande parte de nossos estudos estão focados em “re-habilitar” o corpo para a vida, mesmo quando são impostos processos de adoecimento agudo transitório, ou ainda cornificadas incongruências fisiológicas com ela quase incompatíveis. Porém, hora nenhuma pensamos que durante grande parte de nossos encontros com pessoas, estaríamos aliviando suas dores ou quem sabe, habilitando uma reconciliação com uma parte inerente á vida – A morte.

Um fenômeno inevitável, que foi deixado de ser tratado como um fato pontual ao longo dos anos dentro da biomedicina atual devido a modernização e padronização das práticas e tecnologias assistidas, o que transformou o seu conceito em algo mais complexo e o seu processo prolongado, vivido em etapas.

Mas ela chegou, já nos primeiros instantes de nossos estágios, sorrateira e fria, nos lembrando que nossas tecnologias de atenção aprendidas para assistir, cuidar, ensinar o cuidado de si, também precisavam agregar a finitude da vida como parte da premissa na construção de saúde. Nesse sentido, fomos aprendendo com o campo, buscando leituras paralelas, opiniões de outros profissionais e principalmente entendendo a cada novo encontro, o que era a escuta singular do corpo revelada às vezes pela voz que aprendemos ouvir também com as nossas mãos, o que veio a se tonar a melhor tecnologia para entender os desejos tão distantes do que a biomedicina nos quis ensinar.

Era um chamado desafiador. Rosa estava quase despetalada, e contava conosco para aliviar suas dores e lhe trazer um pouco de conforto. Impossibilitada de fazer uso do celular, somos acionadas por uma amiga. Havia pressa, na voz de Rosa quando essa reforçou o telefonema por um áudio no celular.

Em um prédio numa rua movimentada no Centro do Rio de Janeiro, Rosa aguardava as fisioterapeutas, acompanhada de duas amigas. O que nos faz crer ter-se formado uma rede de mulheres para o seu cuidado. Após nossa chegada anunciada pelo porteiro do prédio, no sexto andar, escutamos uma voz feminina forte e impostada nos guiando pelo caminho de um corredor escurecido até uma fresta de luz, permitida invadi-lo pela porta que foi aberta em dueto com o eco da voz feminina. Somos convidadas a entrar em um apartamento modesto e ir de encontro com uma jovem senhora no quarto da porta à esquerda. Ela estava com os cabelos tratados recentemente, e olhos perplexos e desconfiados olhando por detrás de um misto de surpresa e desconfiança, dentro de um corpo magro e pequeno. Tem caixas de remédios no criado mudo a sua direita junto com algumas agendas e cadernos, esses que mais tarde entenderíamos que era para o seu próprio controle de horários de suas medicações e sinais vitais, e a esquerda no pé da cama do lado esquerdo um amontoado de fraldas e outros produtos de limpeza. Rosa, tosse, e grita em certo desespero colocando a mão na direção posterior do seu lado direito. Ela tem uma tipóia que lhe segura o braço direito, e quando para de tossir retoma a fala nos explicando que deveria usá-la por mais alguns meses até seu osso se recuperar de uma lesão “Litia”.

Em seguida, sua história é contada, sem uma aparente cronologia, e interrompida às vezes pela tosse dolorida com certos momentos de emoção. Rosa se lembra de sua última internação e nos conta o quanto foi difícil para ela permanecer ali dia após dia nos trazendo junto com ela a recordação da Rosa que uma vez floresceu. Explica que a dor que a faz chorar, enquanto relata o desconforto, não acontece o tempo todo e por isso ainda não quer tomar morfina. Mas vai pedir ao médico que virá ao final da tarde, outro analgésico para tentar sanar um pouco dessa dor que tanto incomoda, já sua amiga R aconselhou que ela não tomasse morfina ainda, antes de precisar de fato.

À medida que relata por demanda espontânea seu caso, pede sua amiga H, para mostrar seus exames. As imagens agora a desvelam “o por dentro” junto às suas queixas; uma ressonância de sua alma aflita e voz chorosa, justificando que entendia que aquele não era um espaço para psicologia, mas que ela queria alguma qualidade de vida:- as vezes, peço a Deus para me levar porque é muito sofrimento e me pergunto se minha hora chegou. No momento seguinte volta a dizer que quer viver mais, porém não depender tanto das pessoas:- só de conseguir andar dentro da minha casa e ir ao consultório para fazer os meus tratamentos já está bom para mim. Rosa entendia sua condição e não pedia muito. Enxergando em nós uma esperança que parecia estar perdida a muito tempo dentro de si.

A cronologia de seu testemunho, entre a doença pregressa e atual, se mistura em uma linha que parece ter sido seguida por muitas pistas, muitas especialidades, até que os esfarelamentos causados pelo mal que habita seus ossos pudessem ser nomeados:- era só uma rinite que não passava, nunca imaginei o que poderia ser, tanto que os médicos só descobriram alguns anos depois. O que nos faz imaginar o número de intervenções que seu corpo foi submetido e as muitas ordens que nele haviam sido impostas pela própria progressão de sua doença. Rosa conta ter perdido várias pessoas para o câncer, nos fazendo desconfiar que sua aproximação empírica da doença, que agora também lhe acomete, ensinou os estágios do tratamento e sua evolução, estando o seu corpo localizado no final.

Ao longo de nossos encontros depois de muitos acertos, conversas, palavras de carinho e conforto, costuras, aprendizado, ensinos e percepções entendemos que Rosa nos quer ao invés da morfina e diz que deixará essa medicação só para quando a dor doer demais.