Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O trabalho da enfermagem na Atenção Primária no Brasil e na Espanha: análise em perspectiva comparada dos elementos do processo de trabalho das profissionais.
Amanda de Lucas Xavier Martins, Helena Maria Leal S. David, José Ramón Martínez-Riera

Última alteração: 2022-01-25

Resumo


Apresentação: o estudo é parte da tese de doutoramento da autora que investiga o trabalho da enfermagem na Atenção Primária à Saúde em perspectiva comparada entre Brasil e Espanha. Analisa os aspectos do trabalho da enfermagem, explorando a percepção das profissionais sobre o processo de trabalho no cotidiano dos serviços de saúde.

Método: o método se guiou pela perspectiva do materialismo histórico-dialético, considerando, entretanto, a compreensão dos sujeitos sobre seu processo de trabalho, contemplando a imersão nos serviços para coleta de dados através de observação participante, entrevistas e questionário estruturado. A pesquisa foi realizada durante um a dois meses em unidades de saúde da Espanha e do Brasil. Participaram um total de 63 profissionais de enfermagem (31 enfermeiras e 32 técnicas/auxiliares de enfermagem) nos dois países. Tratamos de realizar a descrição e análise em perspectiva comparada dos dados coletados, buscando investigar e conhecer a percepção sobre os elementos do processo de trabalho da enfermagem neste nível de atenção, considerando a experiência cotidiana dos enfermeiros e técnicos de enfermagem da Atenção Primária nos países. Abordamos o objeto de trabalho necessidades de saúde, aos instrumentos e finalidades do cuidado das profissionais de enfermagem.

Resultados: a maior parte das entrevistadas no Brasil e na Espanha situa o entendimento das necessidades de saúde na manifestação de problemas de saúde clínicos, pautados, sobretudo, no paradigma biomédico, por via da medicalização. Nas falas das entrevistadas, as enfermeiras e técnicas brasileiras apontam com mais frequência as questões que se relacionam ao padrão de reprodução social da população. Por outro lado, observa-se que a “questão social” é menos citada como principal fonte dos problemas de saúde dos usuários na Espanha. Neste país as participantes sinalizam dificuldades que se relacionam à desinformação e desconhecimento sobre a situação de saúde e cuidados a serem tomados pelos próprios usuários no processo de construção da sua autonomia; a compreensão das necessidades se dá como a expressão de uma prática instaurada e ofertada pelos serviços de saúde. A informação e o desconhecimento relacionam-se à capacidade do usuário em adaptar-se às intervenções dos profissionais de saúde. Ademais tem-se o foco nas demandas individuais que os usuários trazem como portadores de alguma disfunção orgânica, sendo uma forma de apreender o objeto que sobrevaloriza o conhecimento da clínica. Os instrumentos de trabalho da enfermagem são comuns uma vez que o aspecto central da atuação das enfermeiras e técnicas/auxiliares de enfermagem no Brasil e na Espanha recorrem, sobretudo, ao saber relacional para captar e atuar sobre as necessidades de saúde dos usuários. No entanto, não se resume à interação individual em consultório, considerando que o acesso ao contexto de vida (social, cultural, familiar) é elementar na atenção às necessidades de saúde destes usuários. Os instrumentos específicos da categoria para transformação deste objeto são dificilmente aplicados no cotidiano dos serviços no Brasil e na Espanha, implicando a percepção mais comum das atribuições (tarefas) pré-definidas nas políticas e/ou serviços como os instrumentos e a finalidade em si do seu processo de trabalho. As respostas das entrevistadas apontam algumas pistas para compreender as dificuldades: 1) a forma de organização do trabalho nas unidades de saúde; 2) a atuação “centrada na pessoa” (para adaptação das prescrições e planos terapêuticos à condição clínica; e 3) a divisão técnica e social do trabalho em saúde. Em relação à organização do trabalho nas unidades, a finalidade imediata do processo produtivo dos serviços é um produto quantificável, seja no número de procedimentos, intervenções, consultas e atos de saúde descritos na “Carteira de Serviços” seja no atendimento aos “itens” e indicadores pactuados nos contratos de gestão, qual seja com a gestão pública, direta ou indireta. No Brasil, diante do aumento da população no território sob a responsabilidade sanitária das equipes de Saúde da Família, o trabalho transforma-se em uma espécie de triagem, uma pré-avaliação clínica pelas enfermeiras, que se tornou a principal estratégia de intensificação do trabalho destas profissionais nas unidades. O uso da adjetivação “centrada na pessoa” para atenção às condições clínicas, antes de corresponder aos cuidados em sua integralidade desprendidos para os usuários, representa uma individualização da assistência aos muitos casos clínicos que surgem para atendimento, oferecendo o máximo de atos e procedimentos possíveis com o máximo de “qualidade” necessária à satisfação do “cliente”. Cabe destacar, por fim, as distorções da divisão técnica e social (gênero, raça e classe) do trabalho em saúde, especialmente no interior da enfermagem no cenário brasileiro. As técnicas/auxiliares de enfermagem representam 70% da força de trabalho da categoria (mulheres negras das classes populares) no Brasil e não deixam de realizar o cerne do cuidado, nas brechas das massivas tarefas manuais a elas direcionadas. No entanto, são desvalorizadas em termos de qualificação, remuneração e direitos sociais e trabalhistas, ao não ser proporcionado o acesso à formação integral, politécnica para a prestação do cuidado de enfermagem na sua integralidade e acesso ao mercado de trabalho como enfermeiras. O esperado é não haver essa divisão entre trabalho manual e intelectual, o que permitiria a tão visada melhoria da qualidade na atenção, posto que este corpo de profissionais poderia atuar compondo as equipes e exercendo a atuação na integralidade do cuidado, valorizadas adequadamente.

Considerações finais: na análise comparativa dos aspectos do processo de trabalho da enfermagem no cotidiano dos serviços de Atenção Primária nos países, foi possível destacar três questões fundamentais que compõem os elementos do processo de trabalho da enfermagem no Brasil e na Espanha. São elas: os instrumentos de trabalho se relacionam, sobretudo, aos saberes de apreensão do objeto necessidades de saúde, vinculados, principalmente, ao contexto de vida na sua integralidade e articulado ao território-processo; saberes dos instrumentos de trabalho em duas dimensões, sendo a primeira fundamentalmente centrada na relação intersubjetiva de acolhimento, escuta ativa e vínculo e a segunda relativa ao conhecimento e aproximação da realidade concreta do contexto de vida e produção social da saúde nos territórios. A terceira questão é a síntese destas duas dimensões dos instrumentos de trabalho que compõem o saber específico da enfermagem na Atenção Primária que, de acordo com a compreensão das profissionais, são centrais para a realização das atividades subsidiárias tais como visitas domiciliares, consultas individuais, realização de procedimentos e, principalmente, a educação em saúde e ações comunitárias/intersetoriais. Não obstante, o cuidado da enfermeira também é permeado pelo conhecimento da gerência administrativa e da gestão do cuidado no trabalho coletivo das equipes. Contudo, cabe destacar a presença comum da compreensão das atribuições pré-determinadas pelas políticas de saúde e serviços na organização das atividades, como instrumentos e finalidade em si do processo de trabalho da enfermagem. Nesta questão, ao nosso ver, reside a dificuldade de incorporação dos instrumentos e saberes específicos da enfermagem no processo de trabalho na Atenção Primária. Tal questão se manifesta antes pela própria forma de organização dos serviços, que tem cada vez mais se pautado pela homogeneização das ações e da gestão com base fundamentalmente à pragmática utilitarista da produção de resultados imediatos e simplificados. Tais ações têm foco nas metas estabelecidas nos acordos e contratos de gestão de forma alheia aos profissionais e às necessidades reais dos usuários, específicas das localidades de trabalho. Este processo é resultado da pouca valorização da participação popular e dos profissionais nas discussões e decisões das prioridades de atenção de forma ampla e democrática.