Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
Previne Brasil e relações de poder contra os saberes populares e as plantas medicinais na APS
ARTUR ALVES DA SILVA, LUCIANA ALAIDE ALVES SANTANA, MICHELI DANTAS SOARES

Última alteração: 2022-02-04

Resumo


Apresentação: O uso das plantas medicinais em suas mais diversas formas (chás, tinturas, emplastros, benzimentos, banhos, entre outras) sempre esteve presente na história da humanidade e segue presente no cotidiano popular, mesmo quando os serviços da Atenção Primária à Saúde não promovem o diálogo com esses saberes. O presente resumo tem como foco o novo modelo de financiamento da APS, o programa Previne Brasil, que fundamenta-se apenas em critérios biomédicos, influenciando as Equipes de Saúde da Família a terem uma atuação restrita à biomedicina, focando apenas em vacinação, realização de exames laboratoriais, procedimentos e atenção ao pré-natal, desconsiderando aspectos importantes da integralidade e dos atributos da APS. Diante do exposto, pretende-se abordar como esse programa pode exercer relações de poder, reduzindo a atuação da APS à lógica biomédica, em detrimento dos saberes populares, em especial aqueles relacionados às plantas medicinais. Desenvolvimento do trabalho: Trata-se de uma pesquisa realizada no contexto do Mestrado Profissional em Saúde da Família (PROFSAUDE), baseando-se no método cartográfico, com a produção de dados se constituindo a partir da escrita em diário de campo, no qual o pesquisador está registrando suas afetações a partir de situações disparadoras surgidas no trabalho como médico de família e comunidade da Unidade de Saúde da Família Alto da Maravilha II, que abrange o quilombo urbano Alto da Maravilha e comunidades do campo, no município de Senhor do Bonfim, Bahia. Essas afetações estão sendo registradas em diários de campo, que constituem cenas cartográficas, a partir das quais são realizadas discussões durante a pesquisa. Resultados e/ou impactos: Os principais resultados do trabalho são as cenas cartográficas. Aqui será exposta uma cena registrada no diário de campo: “Na estrada, em meio a caatinga que começa a vestir os seus galhos de verde após a chuva chegar, voltando de Jaguarari para Senhor do Bonfim, me pego numa reflexão: como é que eu consigo apoiar outras Equipes de Saúde da Família em coisas que não consigo botar em prática em minha Unidade de Saúde da Família? Este pensamento surge no retorno de uma Unidade de Saúde da Família, onde fui convidado para apoiar na implantação de uma farmácia viva. Com muito prazer aceitei o convite e nos dias combinados peguei a estrada em direção a Jaguarari. Mal cheguei lá, já me senti em casa, sendo recebido com aquele típico acolhimento do interior do Nordeste. No momento inicial, numa rodada de apresentação, ouvi do grupo a expectativa de que eu ensinasse o uso das principais plantas medicinais que pudessem ser aplicadas no contexto da APS. Conversa vai, conversa vem, fomos construindo saberes (naquele momento eu mais aprendia do que ensinava) e de repente os/as participantes foram relembrando formas de cuidado com as plantas que tinham aprendido com suas famílias, inclusive um agente comunitário de saúde falou com muito orgulho do seu pai que era um guardião dos saberes das ervas. A partir desse papo, relatei que não tinha preparado uma apresentação para ensinar o uso das plantas, mas que tinha chegado lá com o objetivo de provocá-los/las a resgatarem os seus saberes sobre as plantas medicinais e inspirá-los/las a aprender com os seus mais velhos. Desse encontro, pactuamos a implementação de um horto de plantas medicinais junto da comunidade, os ACS combinaram de se encontrar com os guardiões dos saberes populares das suas microáreas e a enfermeira e o dentista planejaram estudar juntos sobre como incorporar as plantas medicinais nas prescrições. Foi depois desse encontro potente, ainda na estrada, que pude perceber que para mim é muito mais fácil apoiar outras Equipes de Saúde da Família do que implementar essas ações no dia-a-dia da minha Unidade de Saúde da Família. Atuando como médico de família e comunidade, num sistema fundamentado na lógica biomédica, parar os atendimentos para conversar e planejar ações sobre plantas medicinais é algo complicado, o que está piorando com as novas definições do Ministério da Saúde. A partir do programa Previne Brasil, eu, minha equipe e tantas outras equipes desse Brasil têm funcionado muito mais sob a lógica capitalista de produtividade e cumprimento de metas (chamadas de indicadores), mesmo quando não são oferecidas condições dignas de trabalho. Nesse cenário, fazer algo que não está dentro dos indicadores, para a gestão, é como se fosse perda de tempo, uma vez que não haverá o reconhecimento do Ministério da Saúde que poderia se traduzir em incentivos financeiros. É nesse contexto que a APS vai se afastando dos seus princípios e focando nas doenças. No entanto, as histórias de construção do Sistema Único de Saúde e da APS no Brasil são inspirações que me convidam a resistir. Não sei muito bem como, mas foi preciso fazer essa movimentação com outra equipe para me despertar e perceber que não posso permitir ser guiado apenas pelo programa Previne Brasil. Que a resistência da caatinga que com as primeiras águas das chuvas vai transformando o cinza dos galhos secos em folhas que explodem tons de verde siga me inspirando!” Considerações finais: Essa cena revela que a APS tem um grande potencial para dialogar com os saberes populares relacionados às plantas medicinais, possibilitando construções entre usuários e trabalhadores da saúde que vão além da biomedicina, reforçando o atributo da competência cultural. No entanto, o atual Ministério da Saúde tem promovido mudanças na APS que implicam na redução das possibilidades de atuação dos trabalhadores da saúde para além da lógica biomédica. Dessa forma, o novo financiamento da APS proposto pelo programa Previne Brasil pode influenciar as Equipes de Saúde da Família a restringirem suas atuações de acordo com os indicadores previstos pelo programa, todos relacionados à biomedicina. Nesse contexto, é essencial que as Equipes de Saúde da Família tracem estratégias que possibilitem construções para além desse programa reducionista. No que se refere às plantas medicinais, por exemplo, a APS pode atuar com a realização de grupos, implementação de hortos e construção de espaços que viabilizem encontros de saberes entre os usuários e trabalhadores. Vale destacar que tais realizações se configuram como resistência no atual cenário de ataques à APS e ao SUS.