Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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RESISTÊNCIAS NO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL NO ENFRENTAMENTO À PANDEMIA
Tatiane da Rosa Vasconcelos, Alcindo Antônio Ferla

Última alteração: 2022-01-19

Resumo


Esse texto, formatado como ensaio teórico e empírico, busca refletir sobre o cuidado em saúde mental no período em que vivemos, com dois analisadores importantes: as iniciativas federais de desestruturação da política de atenção psicossocial, principalmente nos últimos quatro anos, e o enfrentamento à pandemia de COVID-19, que coloca o sofrimento mental na agenda do cuidado. Essa reflexão é decorrente de um exercício de pensamento, produzido na disciplina de “Seminário Integrador de Saúde e Sociedade”, que teve encontros virtuais muito produtivos durante o segundo semestre de 2020, com trocas e compartilhamentos de ideias que despertaram reflexões e curiosidades, mesmo na modalidade de ensino remoto. Pensando na temática que mobiliza o estudo no Mestrado em Saúde Coletiva, que é a saúde mental, será feita uma relação do que considera-se fazer sentido para respaldar as colocações, considerando disparadores de pensamento que operaram durante as dinâmicas pedagógicas da atividade de ensino. Como as demais questões da saúde e da vida, em geral, a temática foi atravessada, no ano de 2020, com as medidas de enfrentamento à pandemia de COVID-19, fazendo com que o tema inicial, saúde mental e participação/controle social, também formassem um triângulo analítico com a condição específica, que representaremos aqui pelas reações do Conselho Nacional de Saúde. Com a Reforma Psiquiátrica há uma reformulação no sentido do cuidar que passa a ser em liberdade e em espaços comunitários. Porém, mesmo com os muros sendo derrubados, o que permanece é o enraizamento moral e social diante dos usuários que frequentam os serviços de saúde mental, tanto nos espaços comunitários que deveriam prestar o cuidado de forma integral e subjetivo há profissionais que ainda exercem a lógica manicomial através de suas ações e/ou falas, como na sociedade em geral através dos modos de agir e pensar. Além disso, há a discriminação do outro por ser diferente, pois estamos inseridos numa cultura que estigmatiza a diferença, mas cabe lembrar que a reforma é uma via de mão dupla que além de estar registrada em lei também deve ser um campo estudado e discutido na formação e em cada encontro que se produz consigo mesmo e com o próximo. O cuidado em liberdade toma um sentido agudo em tempos de pandemia de COVID-19, onde a crise de civilidade que o exemplo da saúde mental exemplifica toma proporções inéditas e escala mundial. As relações da liberdade com a saúde ficam explicitadas não apenas pela ideia de que não pode haver cuidado sem liberdade, mas que há situações em que as restrições às liberdades individuais, feitas de forma coletiva, são expressão da produção da saúde. E a crise civilizatória explicitada na pandemia aponta a necessidade de equalizar a circulação de todos, para preservar a saúde de cada um e, sobretudo, a vida de quem está exposto às condições de vulnerabilidade que o modo de viver em sociedade criou, sobretudo pelas restrições de renda e acesso a bens de consumo e à moradia, e a vida das pessoas que trabalham em funções essenciais e que sustentam as condições de saúde e de sobrevida. A crise atual parece nos recolocar a questão do cuidado em liberdade, apontando a ineficácia das restrições seletivas, na história da psiquiatria muitas vezes utilizadas como punição moral a pessoas e grupos, e propondo a mediação com a ideia da equidade. Mas nos mostra também que há uma tensão que precisa ser cultivada entre a ação do estado nas políticas públicas, os interesses privados e a participação social. Nesse caso, diante da omissão translúcida da gestão federal no enfrentamento à pandemia, além de estados, municípios e serviços isoladamente, têm visibilidade as iniciativas desencadeadas pelo Conselho Nacional de Saúde, cujas recomendações se expressam em dinâmica interação com as questões do cotidiano, ao longo do ano de 2000. A Reforma Psiquiátrica veio de uma forma potente e conseguiu transformar muitas práticas, porém não o suficiente para dizer que hoje as práticas sociais, assistenciais, profissionais e os processos de trabalho estão se desenvolvendo, pois isso envolve formação e capacitação de profissionais dispostos a trabalharem em prol do cuidado em liberdade promovendo a desinstitucionalização que ainda existe em muitos serviços. O sofrimento é algo que atravessa a vida de todas as pessoas, por isso o debate sobre saúde mental não deve se restringir a especialistas da área, devendo ser o mais amplo possível. A saúde mental não se limita ao autocuidado médico ou psicológico e não é algo privativo dos saberes psi, é um campo interdisciplinar e multiprofissional que agrega vários profissionais da saúde e de outras áreas de conhecimento, além disso, saúde conforme destaca a Constituição de 88 é sobre qualidade de vida, boas condições de trabalho, moradia, mobilidade urbana, cultura, lazer, etc (BRASIL, 1988). É fundamental que a saúde mental seja compreendida enquanto direito fundamental a saúde, na medida em que falar sobre isso é falar sobre defesa do SUS, defesa incondicional de direitos humanos e da vida. O contexto de enfrentamento à pandemia de COVID-19, que assolou o mundo no ano seguinte à 16ª Conferência Nacional de Saúde, colocou um desafio relevante para o controle social, sobretudo pela perspectiva negacionista claramente assumida pelo governo federal e diante de diversas iniciativas de desconstrução das políticas sociais desencadeadas pela Constituição de 1988. A análise das recomendações emitidas pelo Conselho Nacional de Saúde para o enfrentamento à pandemia demonstra que o colegiado nacional de controle social se manteve atento e resistente às iniciativas do governo federal e parte da sociedade brasileira. As recomendações ocupam a lacuna de direção nacional diante da postura subserviente do Ministério da Saúde, atualizando orientações de natureza técnica e política para diversos órgãos com interface na execução da política de saúde e com base nas diretrizes emanadas nas conferências e na legislação do SUS. O conteúdo expresso em relação à proteção aos trabalhadores, à vacinação e aos cuidados e proteção da população, que foram as categorias empíricas sistematizadas nesta análise, demonstram que se essa tivesse sido a orientação geral da direção nacional do Sistema Único de Saúde, o Brasil teria um desempenho menos desastroso no enfrentamento à pandemia. Mais do que isso, as orientações emanadas do CNS tiveram um diálogo intenso com o cotidiano dos componentes descentralizados do SUS, onde se verificou respostas mais adequadas em termos técnicos e de respeito às disposições legais do sistema de saúde brasileiro e à saúde como direito humano universal. Particularmente em relação à saúde mental, temática que a resistência do CNS já se expressava na ideia de cuidado em liberdade e demais diretrizes dos processos de reforma das redes especializadas e das interfaces entre a saúde mental nos diferentes pontos de atenção nos territórios, as orientações demonstraram uma grande coerência e consistência.