Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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GAM/TEATRO ENTRE A SERINGA E A FLOR: RELATO DE EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO EM PSICOLOGIA
Thales Borges Lindenmeyer

Última alteração: 2022-01-25

Resumo


  • Apresentação

Um acadêmico de Psicologia cursou as disciplinas de Estágio Específico I e II no CAPS II - Prado Veppo no ano de 2019. Uma de suas ações foi a participação no grupo de Gestão Autônoma da Medicação (GAM), que tem por objetivo colocar em discussão o protagonismo dos usuários de saúde mental com relação ao seu projeto terapêutico singular. No contexto do grupo, seus participantes formularam a ideia de que a luta por direitos em saúde mental poderia ser trilhada a partir da publicização de suas realidades. Assim surgiu a proposta de experimentações em teatro. Este trabalho tem como objetivo geral apresentar uma narrativa da experiência GAM/Teatro em 2019. Para isso, tem como objetivos específicos: descrever as práticas, espaços e participantes; apresentar a narrativa de uma das apresentações de teatro; e captar a compreensão dos participantes sobre os efeitos do grupo.

 

  • Desenvolvimento do trabalho

Como método, vale-se das considerações sobre cartografia e relato de experiência de Passos e Kastrup (2005), atentando-se em descrever o que se dá no plano das formas e dos afetos. As atividades do grupo aconteceram no CAPS Prado Veppo, em salas e auditório da Antiga Reitoria da UFSM, no auditório do Hotel Itaimbé e no Bombril - Centro de Atividades Múltiplas. Participaram cerca de sete pacientes do serviço, dois estagiários, uma mestranda e uma profissional. As ações foram: (a) rodas de conversa; (b) aquecimentos; (c) exercícios de improvisação. Influenciadas(os) pelas considerações sobre Teatro Popular de Boal (2005), executamos ações baseadas nas demandas e problemas relacionais que surgiram nas rodas de conversa; (d) escritas. Escrevemos poemas, cartas, manifestos, trechos de diário e roteiro para apresentações; (e) ensaios; (f) apresentações. Aconteceram quatro apresentações. A primeira foi na Mostra Regional GAM, no auditório da Antiga Reitoria, evento que contou com a presença dos grupos da região centro-oeste do estado. A segunda foi no evento Saberes e Práticas, promovido pelo curso de Psicologia da FISMA, no auditório do Hotel Itaimbé, cuja experiência é apresentada neste trabalho em forma de narrativa como resultado. A terceira foi em uma defesa de dissertação de mestrado em Psicologia na UFSM. A quarta no Bombril - Centro de Atividades Múltiplas. Uma possível sinopse para as primeiras apresentações: uma paciente que ouve vozes e vive o conflito entre suas redes de apoio, portando flores, e um médico com uma seringa, simbolizando a lógica manicomial de cuidado em saúde mental; e (g) ida ao teatro. Assistimos no Espaço Cultural Victorio Faccin a peça “Como se nada fosse”, de Janaina Castaldello, que traz reflexões sobre saúde mental, sociedade, violência e as ruas.

 

  • Resultados e impactos

O tão esperado dia chegou. Vesti as roupas mais coloridas que eu tinha para representar o hippie. Entrei no personagem antes de sair de casa. Estava me sentindo engraçado e surpreendentemente confiante. Tive dificuldade em encontrar o tal Hotel. Grande. Luxuoso. Medo de ser barrado na entrada. Mas o medo durou só alguns segundos porque encontrei dois colegas fumando. Abracei-os e pedi um cigarro. Eles logo me contaram a triste novidade: as duas colegas que estavam se estranhando há um tempo haviam brigado na porta do hotel. Os membros do grupo estavam cabisbaixos e convencidos de que não haveria como apresentar. Morreríamos na praia. Não entendia muito bem os fatos nem os afetos. Decidi esperar. O auditório em nossa frente estava aberto e aos poucos as pessoas começaram a chegar. Um dos organizadores avisou que poderíamos ter acesso ao camarim.

Camarim? Todos sorriram contentes. Ninguém sabia que teria uma coisa daquelas. O conflito magicamente encontrou uma trégua. Entramos em uma sala ampla. Foi somente ali que pude me dar conta do trabalho das colegas. Algumas delas já estavam caracterizadas com seus personagens. Uma vestida de anjo, outra de demônio. Elas haviam confeccionado garfo, capa e rabo, remontando a representação dos desenhos animados. Outra trouxe vários lenços. Ela deu a ideia de que todos usássemos um para compor no momento da dança com todos os membros da rede afetiva da protagonista. Um tanto desajeitados e tomados pelo afeto do conflito que se dissipou, executamos o último ensaio.

Uma nova angústia apareceu. A colega que anteriormente havia caído em uma crise no CAPS dizia que estava muito nervosa e com medo de que isso fosse acontecer no meio do palco, na frente de todo mundo. Imediatamente as outras colegas passaram a acalmá-la, dizendo que se isso acontecesse haveria muitas pessoas para cuidar dela, e que poderíamos aproveitar isso como um movimento da própria apresentação. Eu não disse nada, mas fiquei nervoso também. Não tinha como saber as proporções dos efeitos de um negócio daqueles mesmo em quem não havia sofrido tanto na vida, como era o meu caso. Antes que pudesse ponderar por mais tempo, tiramos uma foto juntos. Estava na hora. O grupo GAM/Teatro do CAPS Prado Veppo faria sua apresentação. Em cena, a peça autoral “Entre a seringa e a flor”, história de uma ouvidora de vozes que, em sofrimento, se vê entre dois modos de cuidado, um manicomial e outro em liberdade.

Fim da peça. Aplausos. Agradecemos timidamente ao público. Rapidamente saímos do palco. Fui direto para a mesa com as águas. Precisava beber algo. Quando olhei para trás, um susto: alguém deitada no chão. Rapidamente as organizadoras do evento foram até nós. Algumas colegas  disseram que estava tudo bem, que sabiam como lidar com aquilo. Eu confirmei, acrescentando que isso não era novidade, que ela iria se recuperar logo. Disse com apreensão. Minhas pernas tremiam, tentei não transparecer preocupação excessiva. Outra colega surgiu com um copo de água. Anunciou com uma piscadela que havia colocado medicamento. Alguém dizia para a caída que tudo iria ficar bem, que ela conseguiu, atuou na frente de muita gente, fez um ótimo trabalho. Tensão no ar. Outra contou que ela já estava passando mal no palco, mas que foi segurada, postergando o desmaio para o camarim. Eu novamente só observando o acontecimento, impressionado com a calmaria do grupo, com a força do apoio entre pares. Aos poucos ela foi voltando. Bebeu a água, sentou, levantou. Uma segunda onda de aplausos. “Eu consegui!”, dizia ela repetidamente. Até as organizadoras do evento, que sabiam da missa a metade, se emocionaram com a cena.

 

  • Considerações finais

Como considerações finais, apresentamos a compreensão dos participantes. Os acadêmicos pensam que os objetivos do grupo GAM se deslocaram da centralidade do tema da medicação para o debate e experimentações em política, ética, estética e clínica. As(os) usuárias(os), por sua vez, expressam que o teatro é como se fosse uma parte da gente, ele cura uma parte da gente, e faz isso porque nos ajuda a ter ideias sobre a vida, a se colocar no lugar do outro, a escolher fazer isso e não aquilo.